"Tive um evento para a Architectural Digest no sábado e no domingo comecei na Vogue"

No final do primeiro ano à frente da Vogue Arábia, Manuel Arnaut reflecte sobre o percurso que o levou de Lisboa para o Dubai.

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Há mais de três anos que Manuel Arnaut fez as malas para o Dubai. “Quase nem tive tempo de fechar as gavetas em casa”, brinca o actual director da Vogue Arábia, que celebra esta segunda-feira o primeiro aniversário à frente da publicação. Era editor da GQ Portugal, antes de esta fechar – sendo retomada mais tarde pelo grupo Lighthouse, actual detentor da Vogue Portugal –, e, pouco depois, abraçou o desafio de ser editor fundador da Architectural Digest do Médio Oriente, onde esteve até ao ano passado.

Neste momento comanda uma publicação com uma distribuição de perto de 35 mil cópias mensais, com relevância a nível internacional. Em pouco mais de um ano, a revista conseguiu instituir a sua capa como uma das mais cobiçadas a nível mundial, retratando figuras como a supermodelo Gigi Hadid e a cantora Rihanna. Na edição de aniversário, em Março, posaram juntas as modelos Iman e Imaan Hammam. Algumas das escolhas – como a de Rihanna a encarnar a rainha Nefertiti – geraram polémica em torno do conceito de apropriação cultural, o que acabou por ajudar a própria revista a ter projecção além fronteiras.

Manuel Arnaut acompanhou o nascimento da Vogue Arábia – que começou como uma publicação digital, no final de 2016 e teve o seu primeiro número em papel, poucos meses depois – , tendo substituído a empresária (e princesa saudita) Deena Aljuhani Abdulaziz na direcção. O director da Vogue esteve em Lisboa, durante a Condé Nast International Luxury Conference, onde partilhou um painel com o criador Felipe Oliveira Baptista, antes de ser anunciada a saída deste da direcção criativa da Lacoste

Costuma vir a Portugal com frequência?
Venho uma vez por ano. Como viajo para as semanas da moda e são muitos dias seguidos, já não me sobra muito tempo [para vir].

Como surgiu a possibilidade de ir para a Architectural Digest (AD) do Médio Oriente?
Estava em Portugal. Foi numa altura em que fecharam muitas revistas e as empresas tiveram de se readaptar. Eu trabalhava na GQ e a revista fechou. Sempre tive vontade de ir para fora e ter uma experiência internacional.

Algum país em concreto?
Não. O que acontece é que eu tentei vários países e mesmo quando estava na Vogue portuguesa escrevi para a Wallpaper, para a Vogue Brasil… Sempre tive esta vontade e tentei muito: mandava currículos para todo o lado, para Inglaterra, para o Brasil... Agora chego à conclusão que as coisas acontecem de uma forma natural e às vezes não vale a pena a pessoa ir contra a parede, tem só de esperar que a janela se abra para que as coisas aconteçam. Entretanto tinha amigos que viviam no Dubai, que me apresentaram a uma pessoa que estava a contratar para o lançamento da Architectural Digest. Quando a GQ fechou e eu estava a fazer colaborações com a Máxima e com a Vogue de repente a oportunidade de ir para fora aconteceu. E em três semanas fui-me embora, quando estive anos e anos a tentar.

Já tinha visitado o Dubai?
Não. Foi uma coisa meio maluca. Costumo dizer aos meus amigos que quase nem tive tempo de fechar as gavetas em casa! Fiz as malas e fui-me embora. E, na altura, devo dizer, foi um bocadinho assustador.

Mas não hesitou.
Não tive hesitação porque não tinha nada a perder. O que acontece é que todas as notícias que temos na Europa sobre o mundo árabe são muito negativas e não sabia o que é que havia de esperar. Eu já tinha vivido no estrangeiro quando estava a estudar, mas em Madrid, a 50 minutos de avião. E agora são sete horas e meia, numa cultura completamente diferente, onde eu não falava a língua. Não conhecia a realidade dos media no Médio Oriente.

Já fala alguma coisa?
Falo mais ou menos. Tenho aulas, demora tempo a aprender. Quando cheguei lá foi fantástico porque todas aquelas ideias pré-concebidas que tinha e que se vê na televisão não era nada do que eu imaginei. Encontrei uma cidade que é absolutamente dinâmica, uma cidade jovem, com uma forte comunidade internacional. E onde, porque são países novos, está tudo a acontecer: começam as semanas da moda agora, começam [a destacarem-se] os designers locais. Até em termos dos direitos das mulheres estão coisas fantásticas a acontecer na Arábia Saudita. Para nós são coisas do século passado, mas as mulheres vão começar a conduzir. Todas estas mudanças sociais acabam por nos afectar positivamente. E a Vogue pode ser também o motor porque fazemos um tipo de jornalismo diferente do das outras revistas no Dubai. Falamos de alguns temas que são complicados socialmente, mas que acho que a Vogue tem a obrigação de o fazer.

Por exemplo?
Por exemplo, a violência contra as mulheres, os crimes de honra… As pessoas estão dispostas a mudar. Claro, tudo feito com respeito. Nós também temos de ter noção do sítio onde vivemos. E [a Vogue Arabia] é uma revista para o mundo árabe, por isso não posso de repente chegar e achar que vamos importar as ideias da Europa e dos Estados Unidos.

É um balanço difícil de se fazer?
É um balanço complicado porque se tentarmos passar uma mensagem e formos demasiado abruptos ou se não respeitarmos o que está a acontecer e o território, em vez de a mensagem ser absorvida, o que faz é com que as pessoas assumam "uau, não queremos saber nada disto". Tem de ser tudo feito com tacto, pouco a pouco. Mas a mudança é palpável.

Tratar estes assuntos era um objectivo de início?
O que acontece é que nas outras revistas nunca se falava disto. Nós não temos a revista só a falar disto. Aqui e ali vamos falando sobre esses temas, que é uma coisa que não acontecia.

Como foi da Architectural Digest para a Vogue?
Com a AD o que aconteceu foi que concorri, fui fazer entrevista à Condé Nast, em Paris, e depois fiz entrevista com a empresa que me contratou no Dubai. E consegui o trabalho. O que foi engraçado é que quando eu anunciei que ia começar a fazer a AD as pessoas disseram-me "ah, isso vai ser muito complicado. O mundo árabe não está preparado para abrir as portas das casas e deixar-se fotografar, porque é uma sociedade muito privada". O que acontece é que com a forma cuidada com que tratou todos os assuntos ligados às artes, à decoração e à cultura local e os métodos artesanais locais, as pessoas começaram a adorar a revista. É daquelas coisas que acontecem só na Arábia. [A AD] foi uma plataforma fantástica e acho que ajudou também a que o meu trabalho fosse notado, porque em muito pouco tempo a revista ganhou projecção... e era um bocadinho o underdog. Ninguém acreditava muito na nela.

Como surgiu, então, a oportunidade de ir chefiar a Vogue?
Havia uma directora antes de mim, que era uma princesa da Arábia Saudita. A directora e a empresa decidiram não trabalhar mais juntas. E acho que, como tinha feito um bom trabalho na AD e como rapidamente comecei a conhecer a cultura local e a movimentar-me nos sítios certos, a Condé Nast achou que era a pessoa para tomar conta da Vogue.

Entrou com alguma missão em mente?
A primeira missão era só a de conseguir fazer a primeira revista. Tive muito pouco tempo. Tive um evento para AD no sábado à noite e no domingo comecei a trabalhar para a Vogue. Às vezes as pessoas quando mudam para outro projecto têm dois ou três meses para pensar no que vão fazer. Ali foi entrar a matar e tivemos de conseguir. Foi também complicado porque parte da equipa tinha saído [ao mesmo tempo que a directora anterior]. Não tive tempo para formar equipa.

Que balanço faz deste primeiro ano?
Foi fantástico… Mas foi um bocado assustador. Uma coisa é fazer a AD, que é uma revista serena e ninguém se chateia. Podem não gostar da capa, mas não é problemático. As pessoas vibram com a Vogue e levam as coisas a peito. A responsabilidade foi enorme e eu passei de um director normal de revista que fazia só o meu trabalho a ser alguém que as pessoas começaram a ver ao microscópio, porque a revista tem uma dimensão tão grande. Essa parte pessoal foi complicada porque não estava habituado. Entretanto a pessoa que estava antes de mim era uma figura real da Arábia Saudita e as pessoas não perceberam por que é que ia um homem português fazer uma revista de moda feminina na Arábia. Houve pessoas que criticavam e eu, na altura, ficava muito triste porque não estava habituado a esse tipo de feedback negativo. E não percebia alguns comentários.

Houve reacções fortes, por exemplo, a diferentes modelos e celebridades escolhidas para a capa…
Depois quando é árabe não é a árabe certa... Como fazemos a revista para vários países, acaba às vezes por ser complicado agradar a toda a gente. Faz parte do trabalho. Se toda a gente gostasse de tudo era um bocadinho aborrecido e era sinal de que as coisas não estavam bem. Acho que é fantástico as pessoas usarem as redes sociais para se manifestarem. Primeiro significa que a revista consegue chegar aos leitores, que as pessoas estão preocupadas com o que está a ser feito e que querem participar. Se ninguém escrevesse nada, aí é que eu ficava preocupado.

É uma visibilidade completamente diferente?
É sim. [Algumas pessoas] fazem os comentários o mais desagradáveis possível. O que acontece é que agora já não me preocupo com isso e, às vezes, até acho graça. Já consigo ter algum distanciamento para perceber quando são comentários negativos mas dos quais tenho de tirar alguma coisa ou quando não vale a pena focar-me nisso.

Como é que chegou a esse ponto?
Depois de ler muitos comentários negativos, a pessoa ganha uma carapaça (risos), habitua-se. Quando a pessoa começa um projecto novo há sempre a preocupação sobre o que os outros pensam. Estamos muito à mercê da crítica. À medida que se vai ganhando confiança, que o produto começa a estar mais estabelecido, temos publicidade, as pessoas gostam e querem ser capa também se ganha confiança que faz com que se ligue menos ao que se diz.

Quais foram para si alguns dos momentos altos?
Além de grandes artigos, fizemos uma entrevista com a filha do rei do Dubai, que é a primeira piloto mulher do mundo árabe. Depois temos estas capas internacionais. Fizemos a capa com a Iman e Imaan Hammam – ambas fotografadas pelo Patrick Demarchelier –, para o nosso primeiro aniversário. Fizemos uma festa gigante agora no Líbano. Temos conseguido por a revista no mapa também com diferentes eventos. Fotografámos a Rihanna, o [Karl] Lagerfeld fotografou a Bella Hadid para nós.

Como é que conseguiram pôr a revista no mapa?
Com muito trabalho. Todos os meses são uma batalha. É que podemos ter qualquer coisa fantástica, mas, se no mês a seguir se faz um número mau, toda a gente se esquece. Por isso foi com um trabalho consistente e os agentes começarem a acreditarem nós – dos fotógrafos, das modelos... Até ao ponto de hoje ser uma honra estar na capa da Vogue Arábia. E é fantástico que nós já fotografámos as maiores celebridades do mundo.

Ser português manifesta-se de alguma forma na sua postura?
Ser português ajudou-me muito, por várias razões. Primeiro, nós temos imensa facilidade para línguas e temos um grande poder de encaixe com outras nacionalidades. Acho que é algo histórico, por termos ido para tantos países e termos relação com os países africanos, com o Brasil, com Macau... Por isso, acho que isso está um bocadinho em nós. Depois, como quando estava em Portugal trabalhámos em condições que não eram as normais (orçamento e equipas pequenas) isso ajudou-me também a ser muito desenrascado. E hoje em dia é importante. Gerir uma revista é um pouco como gerir uma empresa: pessoas, dinheiro, talento... 

Que lições aprendeu?
Aprendi a ser mais paciente. Eu era muito impulsivo e levava tudo a sério, ficava chateado com tudo. É importante a pessoa saber esperar, saber ouvir. Se houver alguma coisa negativa esperar um bocado, ler o e-mail outra vez, pensar na solução e avançar. Acho que é um experiência de vida fantástica e fez de mim uma pessoa mais flexível. 

Olhando para o futuro, o que quer ainda levar para a Vogue Arábia?
A ambição é fazer com que a revista cresça mais e ganhar projecção internacional, mas também regional. Quero fazer a revista para o mundo árabe. A única coisa que faço é trazer o know how internacional da Condé Nast para produzir o conteúdo. Mas nós fazemos praticamente a revista toda com histórias da Arábia. Para engrandecer as pessoas que vivem na região, que fazem coisas fantásticas e que em geral o público não conhece. Temos, se calhar 10% de conteúdo sindicado [produzido no exterior da revista].

Que tipo de coisas?
Acho que é fantástico as pessoas saberem sobre o que está a acontecer em termos de moda e arte (por exemplo, com abertura do Louvre em Abu Dhabi). Há uma cena de moda fantástica de novos designers que vêm de todas as partes do mundo árabe e que usam o Dubai como uma plataforma para se apresentarem ao mundo. 

Os desfiles começam a ter relevância a nível internacional?
Em termos de moda no mundo árabe há designers muito fortes – por exemplo Elie Saab e Zuhair Murad. O que acontece é que noutros pólos começam a haver novos designers com outro estilo – não ser só aquela coisa haute couture, com vestidos muito elaborados. Agora há designers de streetwear, designers que fazer abaias com materiais como o neoprene, com bordados, com cores diferentes...

Imagina-se a voltar para Portugal?
Sim. Todas as possibiidades estão abertas, não vou dizer que não. Só estou na Vogue Arábia há um ano, por isso nem penso nisso. Se calhar quando for velhinho (risos). Também quero participar no que está a acontecer no nosso país, que é fantástico, com todo o turismo que temos e adorava poder fazer parte. Vamos ver o que acontece no futuro.

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