Cento e três dias

Habituada a lidar todos os dias com exames, consultas e doenças, a dona daquela voz esqueceu-se de que não há nada de normal na ansiedade da espera por uma resposta sobre o que se passa com o teu corpo.

Da primeira vez que ouves a palavra, há um breve salto no coração, como se ele acompanhasse o momento em que o teu mundo saiu dos eixos. Nódulos. Não queremos ter aquela palavra associada a nós. É como uma marca de que alguma coisa vai, necessariamente, correr mal. Mas, depois, garantem-te que não é preocupante, que é só controlar. Exames uma vez por ano. E, então, os anos passam e os exames trazem sempre o mesmo resultado, igual, igual, igual. E deixas de pensar nisso seriamente.

Até que um dia o técnico que mexe o aparelho do exame sobre o teu corpo te diz que o nódulo cresceu. Já fez alguma biópsia? E, assim, num instante, ficas colada a uma segunda palavra com que não querias lidar. A médica de família diz que vai mandar-te para um especialista, para ele decidir se é mesmo melhor fazer a biópsia. Especialista e biópsia. Respiras fundo, vamos a isso. Não há-de ser nada.

Só que depois ficas à espera. O hospital público não te chama. Passam-se semanas. Ao fim de um mês perdes dois dias inteiros a fazer chamadas consecutivas para lá e não consegues que alguém atenda o raio do telefone uma só vez. Perguntas à médica se não se esqueceu de te enviar para o tal especialista. E garantem-te que não. O pedido foi feito há um mês. Está pendente nos serviços do hospital. Desistes de esperar porque, afinal, o local onde trabalhas tem seguro, mais vale usá-lo. E marcas consulta no privado. Só que não é rápido, como pensavas. Mais um mês à espera.

Por esta altura já contaste a alguma amiga, porque por mais que não queiras preocupar os que te são próximos antes que haja razões para isso (e não vai haver, o mais certo é não haver), simplesmente precisas de dizer a alguém. Tentas não pensar no assunto, mas é uma batalha surda. Reages automaticamente: tentas parecer normal sempre que estás com os teus, sentes que o teu rosto desaparece numa máscara vazia a partir do primeiro instante em que estás sozinha.

Quando a consulta chega, marcam-te a biópsia e análises. O exame é simples, é só espetarem-te uma agulha. Venha ela. Por isso, depois de te espetarem duas agulhas (não foi só uma, afinal), vais trabalhar. Melhor estar ocupada, ajuda a não pensar.

Quem sabe diz-te isso mesmo. Não penses. E é bom quando consegues não pensar, porque o mais certo é não haver razões para te preocupares. Vais ver que não vai ser nada. Pois não. Mas e se for? Se for, resolve-se. Claro que se resolve. Mas vê se entendes: esta sensação de que o teu corpo está a lutar contra ti não é agradável. E não pensas, porque é que estou a passar por isto? Pensas antes, porque não hei-de passar por isto? À excepção de umas emergências na infância de que quase não tens memória, nunca tiveste nada grave, nada de internamentos ou cirurgias. Qualquer dia, vai chegar a tua vez. Foi agora? Não foi nada. Vais ao ginásio, vais trabalhar, almoças com amigos e vais a festas de aniversário. Está tudo bem, desde que não te façam muitas perguntas sobre seja o que for. Todos os planos estão momentaneamente cancelados. Tens saudades de te olhares ao espelho e veres os teus olhos sorrirem. Às vezes pensas que ia ser mais fácil se, simplesmente, ninguém falasse contigo. Excepto tu. Tu podias ajudar a esquecer o mundo por um bocado, mas tu não estás. Por isso, levantas-te, vais ao ginásio, vais trabalhar e passaram mais uns dias.

As análises ficam disponíveis no teu email quando vais no comboio a caminho de um serviço. Há um valor anormal e sabes que não deves fazê-lo, mas procuras no Google o que aquilo pode significar. Não parece animador. Passas o resto do dia a fazer o que tem de ser feito, mas é como se não estivesses bem ali. Nem durante o trabalho, nem ao jantar. Só queres ir para o quarto e ficar sozinha. Quase não te reconheces ao espelho e, então, quando contas a um amigo o que se passou nesse dia, choras, finalmente. Choras o tempo todo que lhe estás a contar e choras depois de a conversa acabar. Foi (quase) só dessa vez. Não há-de ser nada. Logo se vê.

Regressas à espera. A biópsia demoraria sete a dez dias a ficar pronta, disseram-te. Mas o tempo passa e nada. Quando já passaram mais de três semanas, já ligaste por quatro vezes para o hospital privado, para ouvires sempre a mesma resposta, acompanhada de um tom algo incrédulo na voz de quem atende: ainda não está pronta, este tempo de espera é normal, se lhe falaram em sete dias, não deviam tê-lo feito. Habituada a lidar todos os dias com exames, consultas e doenças, a dona daquela voz esqueceu-se de que não há nada de normal na ansiedade da espera por uma resposta sobre o que se passa com o teu corpo. Só queres que essa espera acabe. Estranhamente, deixas de te preocupar. É como se todo aquele tempo fosse a garantia de que não se passa nada de grave. Ninguém te deixaria à espera tanto tempo, se isto fosse sério, não é? Sabes que isto é um disparate, que é quando não nos preocupamos que a chapada nos alcança. Mas não podes fazer mais nada.

E, então, chega finalmente a hora em que te sentas em frente ao especialista e ele te explica tudo. Que, sim, há coisas a fazer, mas que vai ficar tudo bem. Sais dali a pensar que talvez esta noite consigas voltar a dormir bem. Passaram-se centro e três dias desde que a tua médica de família pediu uma consulta ao hospital público. A carta a informar-te da data ainda não chegou.

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