Cuéntalo – o Me Too espanhol – está em marcha

Decisão judicial sobre o abuso sexual de cinco homens a uma jovem provocou uma onda imparável de protestos por toda a Espanha, que chegou à UE e à ONU.

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Manifestações têm sido quase diárias, desde o dia 26 de Abril Sergio Perez/REUTERS
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Manifestação junto ao Ministério da Justiça em Madrid Sergio Perez/REUTERS
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Manifestante com foto do juiz que pensou absolver "La Manada" Heino Kalis/REUTERS

As celebrações do dia 2 de Maio em Madrid contaram com uma actuação diferente na edição deste ano. Para além das tradicionais paradas militares em homenagem aos que participaram na rebelião espanhola contra a ocupação da França napoleónica no início do século XIX, as mais importantes festividades da capital e arredores tiveram uma enorme manifestação, que não fazia parte do programa oficial.

Centenas de mulheres marcharam em direcção às Portas do Sol e à sede do governo regional, ao ritmo dos tambores e dos instrumentos de sopro, cuja cadência ecoava pelas ruas adjacentes. Vestidas em tons de lilás, as manifestantes entoaram cânticos de revolta contra a controversa decisão de um tribunal de primeira instância de Navarra, sobre uma violação protagonizado por cinco homens nas festas de San Fermín (Pamplona), em 2016. 

“Não é abuso, é violação” e “irmã fica tranquila, a tua manada está aqui” foram os clamores mais ouvidos na marcha de quarta-feira em Madrid, que na realidade foi só mais uma num mar de protestos que Espanha tem testemunhado desde que há cerca de uma semana foi conhecida a sentença. E que, acompanhada por um movimento organizado nas redes sociais, promete continuar a inundar as ruas das principais cidades do país. Uma nova manifestação está agendada para esta sexta-feira na capital espanhola, sob o mote “Stop à cultura de violação”.

A sentença

No centro do furacão está uma deliberação dos três juízes da Audiência Provincial de Navarra, a 26 de Abril, que entenderam que os crimes praticados pelos integrantes do grupo “La Manada” – o nome da conversa que os cinco homens mantinham na rede social WhatsApp e onde partilharam os vídeos da agressão – não contemplaram a violação da jovem madrilena, mas um “abuso sexual continuado”, por não se ter observado violência ou intimidação durante o acto – dois requisitos obrigatórios para se poder entender um delito sexual como violação, de acordo com o Código Penal espanhol.

Um dos juízes defendeu mesmo a absolvição dos agressores, argumentando que a vítima não só consentiu, como desfrutou do acto sexual.

Em virtude da decisão judicial, Alfonso Jesús C., Jesús E. D., Ángel B., António Manuel G. e José Ángel P. M. foram condenados a nove anos de prisão e cinco de liberdade vigiada, ao invés dos mais de 20 que o Ministério Público pedia. Acusação e defesa pediram recurso para o Tribunal Superior de Navarra. Mas face ao mediatismo que o caso está a ter em Espanha, é quase garantido que o mesmo chegará ao Supremo.

Uma perspectiva que, escreve o La Vanguardia, dificilmente viabilizará a publicação de uma decisão definitiva em menos de dois anos e que, aliada à mobilização popular, prenuncia uma longa maratona de exibições públicas de desagrado.

Das ruas às redes sociais

No próprio dia em que se conheceu a sentença, dezenas de localidades espanholas – entre as quais Pamplona, Madrid, Barcelona, Valência, Saragoça, Granada, Vigo, Bilbau ou Sevilha – e algumas cidades europeus – com Berlim (Alemanha), Bruxelas (Bélgica) e Londres (Reino Unido) à cabeça – foram palcos de extraordinários e audíveis protestos contra a interpretação dos magistrados sobre o caso, inaugurando um movimento que já é entendido como o Me too espanhol.

Em muitos aspectos semelhante à dinâmica nascida em Hollywood e que alastrou pelos Estados Unidos no final do ano passado, em Espanha ganha cada vez mais corpo o movimento Cuéntalo – qualquer coisa como ‘Conta-o’ ou ‘Partilha-o’, em língua portuguesa.

Promovido pela jornalista Cristina Fallarás, tem como objectivo incentivar as mulheres espanholas, e não só, a tornarem públicas as suas experiências pessoais de abusos e agressões sexuais, como forma de combate à violência machista e à cultura de violação generalizada.

Entre as centenas de mulheres que têm vindo a divulgar as suas histórias acompanhadas pelas hashtags #Cuéntalo, #YoSiTeCreo (Eu sim acredito em ti) e #NoEsNo (Não é não), contam-se algumas caras conhecidas da arena política espanhola.

Como Isabel Lozano – responsável pelo pelouro da Igualdade e Políticas Inclusivas do ayuntamiento de Valência – que revelou ter sofrido abusos sexuais do seu professor de karaté, aos dez anos, ou Dulce Xerach – antiga deputada pela Coligação Canária e ex-vice-conselheira do governo autonómico das Canárias – que diz ter sido abusada sexualmente por um dirigente político ainda no activo.

Código Penal em causa

A mobilização inédita nas ruas de Espanha e nas redes sociais fizeram com que o debate sobre a violência sexual tenha chamado a atenção dos profissionais das áreas da Psicologia e Psiquiatria e dos partidos políticos e órgãos do poder, mas também de Bruxelas e da UNIFEM (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas Para a Mulher).

Houve uma carta aberta assinada por quase 1800 psicólogos e psiquiatras espanhóis, que pediu a mudança do foco das investigações judiciais sobre abusos sexuais, das vítimas para os agressores – argumentando, por exemplo, que a postura de “não resistência” das vítimas é bastante comum em crimes deste género e que, por isso, não deve ser entendida como consentimento. A esta somou-se uma discussão abrangente sobre a tipificação do crime de violação no Código Penal espanhol e nas várias molduras penais europeias e internacionais.

De acordo com o El País, o executivo de Mariano Rajoy está a ponderar rever a legislação espanhola, cujo entendimento sobre crimes que infringem a liberdade sexual se mantém inalterado desde 1995 e que foi rotulado por uma eurodeputada do PP como “arcaica” e “estereotipada”.

Segundo o artigo 181.3 do Código Penal, conjugado com a jurisprudência sobre a matéria, o delito de violação implica obrigatoriamente uma agressão física (violência) e uma ameaça de tal forma grave que leve a vítima a ceder aos agressores (intimidação).

No mesmo dia em que em Madrid teve lugar a marcha das mulheres, no Parlamento Europeu discutiram-se propostas para evitar casos semelhantes ao crime de Pamplona. Numa sessão impelida pelo Podemos e respaldada pelo PSOE – o PP, de Rajoy, torceu o nariz por entender que as decisões judiciais não devem ser questionadas pelo poder político – os eurodeputados debateram a decisão da justiça espanhola à luz dos padrões europeus sobre os crimes de violência sexual.

Contando com a presença e apoio da comissária europeia da Justiça, Vera Jourová (República Checa), os intervenientes no debate exigiram aos Estados-membros que revejam os seus respectivos códigos penais, adaptando a definição de violação ao disposto na Convenção de Istambul (2011). Este tratado. impulsionado pelo Conselho da Europa e em vigor desde 2014, define uma série de medidas para a prevenção e combate à violência doméstica e contra as mulheres.

“A Suécia vai promulgar agora uma lei muito dura contra o abuso sexual em todas as suas formas. Se não se ouvir a palavra ‘sim’, então é um ‘não’ claro”, exemplificou uma eurodeputada socialista sueca, citada pelo El País. “É um estímulo para a UE proteger as suas vítimas de violência sexual”, acrescentou.

Poucas denúncias

Também na quarta-feira houve espaço para uma reacção da coordenadora executiva da UNIFEM. Num comunicado divulgado no site oficial daquele organismo da ONU, Purna Sen deu o exemplo da “leve sentença” que recaiu sobre os elementos do “La Manada” para apelar à imprescindibilidade de o poder judicial ser o primeiro a combater o clima de “impunidade” vigente. 

“A impunidade para as violações de direitos humanos incute uma cultura de violação, culpabiliza e julga as vítimas por injustiças cometidas contra elas e não pode continuar – incluindo nos sistemas judiciais e penais”, defendeu Sen.

Esta tolerância generalizada em relação aos crimes sexuais que a responsável pela UNIFEM denuncia está intimamente relacionada com o número reduzido de denúncias que as autoridades recebem sobre este tipo de delitos. E neste aspecto, Espanha é um exemplo pouco animador.

Segundo os dados de 2015, recolhidos pelo Eurostat, em Espanha há apenas 2,65 denúncias de violações por cada 100 mil habitantes – 3,6 em Portugal. Um número vinte vezes inferior ao da Suécia, líder da lista. Isto dificulta o cálculo total de crimes sexuais – estima-se que 70% a 80% dos casos não sejam denunciados – e espelha bem os constrangimentos sentidos pelas vítimas que residem em solo espanhol em apresentar queixa à polícia.

É precisamente para derrubar estas barreiras e lançar as raízes para uma cultura diferente em Espanha que o movimento Cuéntalo tem promovido as denúncias sobre abusos sexuais, passados ou recentes. As injustiças que muitas mulheres sentiram com a decisão do tribunal de Navarra desenterraram ressentimentos que as vítimas mantiveram abafados durante meses ou anos e deram origem a uma voz poderosa, no que à defesa dos direitos das mulheres diz respeito. O movimento está, pois, em marcha e em velocidade de cruzeiro.

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