Arte para todos os clientes

No final da semana passada, o artista Pedro Portugal publicou neste jornal um artigo intitulado “A decadência das Grandes Superfícies Culturais”, criticando com veemência (aproximando-se às vezes do panfleto) a permeabilidade dos museus e instituições da arte contemporânea ao sistema da “indústria cultural”. Coloco a expressão entre aspas porque cito Pedro Portugal que cita Adorno e Horkheimer. Embora ache que esse grande conceito dos fundadores da Escola de Frankfurt deva ser usado hoje com uma prudência crítica que está ausente no artigo, a tomada de posição de Pedro Portugal é pertinente e traz uma discussão para o nosso espaço público (ou traria, se não houvesse um défice de debate neste campo e uma subtracção do discurso dos artistas, nos casos raros em que ele se manifesta publicamente) que noutros países tem sido muito acesa. E essa discussão diz respeito ao sistema da arte contemporânea — ao modo como funcionam as suas instituições, os mecanismos de exibição e legitimação — e à transformação dos museus de arte clássicos, aqueles que tinham como missão exclusiva guardarem a memória. O artigo de Pedro Portugal suscita, de maneira explícita ou implícita, vários temas. Em primeiro lugar, o título remete logo para a noção de “oferta cultural” e “mercado dos bens culturais”, que dita exigências empresariais aos museus. O museu assumiu a função de ser não apenas o templo da memória, mas também um “produtor”. A par das colecções permanentes, tem sempre grandes exposições efémeras. Ora estas grandes exposições, com a sua lógica governada por fluxos quantitativos e obedecendo muitas vezes a cálculos económicos míopes, provocam a deserção das colecções permanentes em favor das manifestações efémeras, que satisfazem muito mais os espectadores contemporâneos, viajantes por condição da actual vita contemplativa. Como escreveu algures Boris Groys, “a vita contemplativa contemporânea coincide com uma circulação activa permanente”. O museu do nosso tempo sofre, cada vez mais, a tentação do efémero. É um museu a que os curadores, e não tanto os artistas, dão forma. Pedro Portugal, no seu artigo, também aponta o dedo a este museu dos curadores e dos mediadores culturais, que são os grandes protagonistas da arte e da cultura das últimas décadas. Ainda recentemente saiu em Itália um livro-panfleto de dois críticos de arte, Tomaso Montanari e Vincenzo Trione, Contro le mostre (contra as exposições). Tirando a proximidade, nalguns momentos, em relação ao discurso muito reaccionário, muito defensor do restabelecimento do poder aurático da arte, do francês Jean Clair num livro de 2007, Malaise dans les musées, o livro destes dois críticos italianos tem a virtude de mostrar como a lógica das grandes exposições, ou das pequenas exposições com grandes pretensões conceptuais, domina a “oferta artístico-cultural” em Itália (mas os autores do livro estendem o diagnóstico para além do seu país). “A arte é o petróleo da Itália”, disse um dia um governante, com a ideia de que era preciso explorar comercialmente até ao limite o património artístico italiano. A proliferação das exposições-blockbuster e, de um modo geral, a vertigem expositiva que domina o sistema contemporâneo das instituições artísticas deve fazer-nos pensar nesta nova figura do museu-máquina, como lhe chamou Hubert Damisch, esse produtor incansável de exposições e do respectivo merchandising. Consumada em pleno a “bienalização” da arte, o “modelo bienal” alargou-se e estendeu o seu domínio, O texto de Pedro Portugal  trazia à luz algumas destas questões que têm sido objecto de uma discussão incessante. Mas não por cá.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários