A música dos Khruangbin voa para todo o mundo

São uma banda texana e gravam num celeiro numa pequena terriola perdida no mapa. Têm nome tailandês, títulos de canções em espanhol e tocam como combo soul. Confusos? Con Todo El Mundo, o segundo álbum, explica tudo.

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Cómo me quieres?”, perguntava-lhe o avô no seu espanhol de mexicano. Ela, pequena, respondia uma coisa, depois outra, e ainda outra, até chegar à única resposta que aceitava o velho imigrante, já americano: “Con todo el mundo”. É um episódio curto, nada mais que uma pequena história que Laura Lee, a neta, guardará para contar em encontros de família. É, porém, uma história que nos diz bastante sobre os Khruangbin. Discreta como discreta é a sua música, a banda vem conquistando todos aqueles que se deparam com os seus sons lânguidos e elegantes, criados com nada mais que guitarra, a de Mark Speer, baixo, o de Laura Lee, e bateria, a de Donald “DJ” Johnson (e, ocasionalmente, teclados e voz).

Em Janeiro, editaram o seu segundo álbum. Título? Con todo el mundo. E é realmente tudo um mundo aquilo que três texanos criaram num celeiro afastado de tudo. Aqui cabe o rhythm’n’blues e o funk tailandês, cabe surf-rock e escalas musicais do Médio Oriente, linhas de baixo dub e sugestões de outros marulhares caribenhos, imagens de um As Lágrimas do Tigre de Jade, o western psicadélico de Wisit Sasanatieng, em que o delírio de cores e sons tivesse terapêuticas propriedades zen. Neste disco, encontra-se o pôr-do-sol de cores desmaiadas de uma Primavera que termina no hemisfério norte e o laranja garrido de uma tarde que, a sul, se despede. Aqui, tudo se cruza e mistura harmoniosamente: a contagiante Maria también, por exemplo, tem título espanhol, mas é dedicada às mulheres iranianas (actrizes, cantoras) obrigadas a interromper as suas carreiras ou a fugir do país após a revolução Islâmica de 1979 – a linha de guitarra não engana quanto à homenagem.

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Com Con Todo el Mundo, a sua estreia na independente Dead Oceans, os Khruangbin foram aumentando o culto que os rodeava desde o álbum de estreia Mary Kang

“Queremos promover união e um mundo menos dividido por fronteiras”, dizia Laura Lee à imprensa americana quando da edição do novo disco. Os Khruangbin fazem-no de uma forma peculiar: neste tempo de muito ruído, de grandes proclamações que são, em 90% dos casos, histeria esquecida no dia seguinte, os Khruangbin são uma poderosa e inspirada dose de serenidade. Uma utopia feliz, exageremos. Ou, sem exagerar, uma reflexão musical do vasto mundo que se estendia bem para além da janela destes três músicos curiosos por todos os sons, de todas as geografias. Num planeta ligado em rede digital, não será tão difícil descobri-lo. Basta querer (e eles querem muito).

Khruangbin é uma palavra tailandesa que se traduz livremente como “engenho voador”. Escolheram-na porque na génese da banda está o fascínio partilhado, no limite da obsessão, pela música criada na Tailândia por bandas que, nas décadas de 1960 e 1970, traduziam para a sua realidade os sons do funk, da soul, do surf-rock, ou os instrumentais dos Shadows de Hank Marvin, autores daquela que foi, muito provavelmente, a música popular urbana ocidental mais globalizada até à chegada de uns certos Beatles. A Tailândia é apenas parte da receita dos Khruangbin, onde coexistem os ingredientes mais diversos, mas a palavra continua a encaixar neles na perfeição: música em viagem, com tempo para a viagem. Um maná.

O exotismo não mora aqui

No último par de décadas, no que a música diz respeito, descobrimos como nunca descobríramos antes. Multiplicaram-se as editoras dedicadas a revelar pérolas de tempos passados, de todas as geografias, e tornou-se mais frenético e multipolar o interminável diálogo musical entre vários continentes. Editoras como a Analog Africa, a Strut, Awesome Tapes From Africa, a Soundway, a Ostinato ou a Soul Jazz mostraram a ouvidos ocidentais uma história que o Ocidente, em grande parte, desconhecia, permitindo conhecer novos nomes e estimular novos diálogos, novas transformações. Os Khruangbin são uma consequência dessa realidade. Nasceram sob o efeito da música divulgada pelo blog Monrakplengthai, onde são disponibilizadas digitalizações de velhas cassetes de música tailandesa, muitas deles contendo canções que, pela utilização em produções de Bollywood, se tornaram fenómenos de popularidade por todo o sudeste asiático. É por essa origem que, na altura da edição do primeiro álbum dos Khruangbin, The Universe Smiles Upon You (2015), a banda foi insistentemente descrita como Thai funk – era forma de multiplicar o exotismo: banda americana, do Texas, ainda por cima, toca música tailandesa. Acontece que os Khruanbgin são mais exóticos que isso – e não são “exóticos” de todo.

“Julgo que todos adoramos música que nos leve a algum novo lugar. Como o gospel. Segundo a definição do género, não é psicadélica, mas leva-te realmente algures – como o faz o rock psicadélico. É música transportadora”, dizia Laura Lee à XL8RL no início deste ano. “A música tailandesa de que gostamos era fortemente influenciada pela soul e pelo funk americanos, e depois foi reflectida de novo em nós. Vai e vem. Transforma-se num espelho perante outro espelho. Gosto muito dessa ideia”, afirmava Mark Speer à Relix.

Com Con Todo el Mundo, a sua estreia na independente Dead Oceans, casa de Destroyer, Marlon Williams, Riley Walker ou Juliana Barwick, os Khruangbin foram aumentando o culto que os rodeava desde o álbum de estreia. Já eram elogiados por Don Letts, o grande documentarista da era punk, por Giles Peterson, o radialista inglês responsável pela divulgação empenhada das chamadas músicas do mundo, ou por Father John Misty, que os escolheu para cumprir parte da sua digressão europeia de 2016. Agora, à medida que se sucedem os concertos pelo mundo, dos Estados Unidos à Croácia, dos Balcãs à Índia, e que a sua música viaja de hiperligação em hiperligação, como viajaram as compilações de música tailandesa que primeiros os influenciaram, os Khruangbin parecem destinados a maiores voos.

Mark Speer e Donald “DJ” Johnson eram velhos conhecidos. Durante dez anos, tocaram juntos na banda que acompanhava as cerimónias de uma igreja baptista em Houston. Entretanto, surge Laura Lee, professora de matemática e estudante de arte do Oriente. Entrou na casa de um amigo comum a Speer quando este via um documentário sobre música afegã. Speer tocava guitarra, Laura queria aprender a tocar baixo – e assim o fez, nas madrugadas de um período em que sofreu de insónia, conta ela. Donald “DJ” Johnson, nome importante na cena hip hop de Houston enquanto produtor na dupla Beanz N Kornbread, não tardou a ser convidado para ocupar a posição de baterista.

Trocavam ideias por telefone, mail e Skype – especialmente num período, em 2017, em que Laura Lee se mudou para Londres -, mas tudo o que ensaiavam e gravavam tinha um cenário muito concreto: um celeiro em Burton, uma pequena localidade texana de 300 habitantes. “Sentimo-lo como a casa da banda, e a vastidão da paisagem rural cria um ambiente incrível e uma sensação de espaço natural que espero que passe no disco”, contou Mark Speer à Noisey. Essa sensação de vastidão passa realmente. Há algo de quase beatífico nestas peças musicais de uma discrição próxima da ambient music - tocamos chill funk, riem eles -, caso esta fosse interpretada pelo combo residente de uma editora soul clássica.

Diz a banda que, no final dos concertos, são abordados por gente que lhes diz que a música dos Khruangbin faz, literalmente, parte do seu dia-a-dia. “Falam muito de cozinhar, estudar, fazer jardinagem, tomar um duche. Uma obstetra contou-nos que faz os partos enquanto ouve os nossos discos”. Tal não significa que esta música encaixe na categoria de ruído de fundo anódino, qual negligenciável papel de parede a envolver o quotidiano. Precisamente o contrário. Na sua inspirada discrição, na sua elegância despida de qualquer espalhafato, a música dos Khruangbin é um bálsamo para o correr dos dias: carregamo-la connosco e transforma-se a realidade em redor.

OS Khruangbin oferecem-nos o que a música, toda a música que descobriram e vão descobrindo, lhes ofereceu a eles. Ao mesmo tempo que compõem e gravam, agem como divulgadores, quer através dos podcasts que publicam nas suas redes sociais, quer através das compilações que geram para os visitantes da sua página online Air Khruangbin – definido local de partida e de chegada, seremos presenteados com música das mais diversas geografias, seleccionada pela banda. Mark Speer, o homem que, como contou Laura Lee em várias entrevistas, tem por hábito desaparecer dias a fio e manter-se incontactável enquanto pesquisa coisas como “a quintessência do funk chinês”, dizia após a edição do primeiro álbum que a missão dos Khruangbin é levar quem os ouve a exclamar: “’Uau, o pessoal era mesmo ‘funky’ em Hong Kong em 1974, não fazia ideia’. Estamos a tentar mostrar às pessoas que há mais que a América”. 

Dois anos depois, enviou aos companheiros de banda uma compilação com música do Médio Oriente. Ficara particularmente fascinado com a cantora e actriz iraniana Googoosh, uma das silenciadas após a revolução de 1979, e com o guitarrista Kourosh Yaghmaei, considerado o pai do rock persa. Dois espíritos que ouvimos agora em convívio com melodias tailandesas, órgãos gospel, gentis psicadelismos rock, balanço soul, aragens caribenhas. Ouvimo-los desde um celeiro perdido no Texas, “con todo el mundo”.

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