A liberdade de Jason Moran depois da Blue Note

Um dos mais influentes músicos de jazz da sua geração, Jason Moran toca com o seu trio Bandwagon esta sexta-feira, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

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clay patrick mcbride

Numa das suas últimas conversas com Don Was, actual patrão da histórica editora Blue Note, Jason Moran sugeriu-lhe: “Acho que vocês deviam entregar-me um estúdio durante duas semanas porque tenho seis discos para fazer”. O episódio é contado em entrevista telefónica ao PÚBLICO, com gargalhadas pelo meio, as gargalhadas de quem sabe que este ritmo de gravações e edições até podia ser norma nos anos 1950/60, mas não se compadece com os presentes padrões ditados pelos departamentos financeiros das editoras.

A falta de disponibilidade para atender a este pedido foi, na verdade, uma das razões fundamentais para Jason Moran, um dos mais reputados pianistas do jazz norte-americano contemporâneo, decidir bater com a porta e pôr termo a uma relação de 18 anos. “Aquilo que não queria que acontecesse na minha vida era que, se morresse no dia seguinte, a minha carreira se limitasse às gravações da Blue Note, porque isso não representaria o espectro total do artista que sou”, explica-nos. “Agora estou a tentar preencher todos os muitos espaços em branco entre esses discos da Blue Note.”

Desde que deixou a editora de sempre em 2016, Moran não perdeu tempo. Fundou a sua própria etiqueta (Yes Records) e, no ano passado, quase de uma assentada, lançou três álbuns que há muito esperavam a luz do dia: Bangs, um trio partilhado com Ron Miles e Mary Halvorson; The Armory Concert, um regresso ao registo solo passados 15 anos; e Live at the Village Vanguard, precioso acrescento à discografia daquela que é a formação mais estável da sua carreira, em trio com os Bandwagon (Tarus Mateen no contrabaixo e Nasheet Waits na bateria). É com eles que Jason Moran actua esta sexta-feira no Centro Cultural de Belém.

O pianista diz que chegou “tarde à festa”. A esta festa em que os músicos reclamam o controlo sobre a própria criação e se servem de plataformas como o Bandcamp para disponibilizarem a música directamente ao seu público. À sua volta, há vários anos que encontrava exemplos de colegas formando as próprias editoras num gesto de independência. Por enquanto, ignora quanto tempo aguentará lançar discos a este ritmo, mas só para 2018 tem planos para editar mais cinco álbuns – entre os quais duos com Milford Graves e Anthony Braxton.

Renovar o cânone

Jason Moran nunca escondeu uma fortíssima filiação na escola jazzística de gente como Andrew Hill, Jaki Byard, Cecil Taylor ou Geri Allen, todos pianistas de que foi aluno. Mas o seu perfil sempre se fez também de uma forte sugestão de referências vindas da música clássica, sendo disso exemplo o arranque do seu último álbum com os Bandwagon, em que passa primeiro por uma leitura de Der Doppelgänger, do compositor romântico Franz Schubert, só depois se aventurando pelas suas próprias composições.

Como herdeiro da tradição jazzística, acredita também que é seu dever não deixar cair em esquecimento aqueles que o precederam, até mesmo como forma de renovação do cânone. “Se toco um tema do Andrew Hill ou do Sam Rivers, isso tem um enorme significado: estou a mostrar ao público a música que me formou como artista, e é muito importante, na tradição do jazz, mostrarmos as nossas raízes.” Foi também com isso em mente que, nos últimos anos, dedicou boa parte da sua energia a projectos em que interpreta a música de Fats Waller e Thelonious Monk.

Enquanto se libertava dos constrangimentos da Blue Note, Jason Moran entregou-se ainda a um projecto especial: a música que acompanha uma versão de palco do pungente livro de Ta-Nehisi Coates, Between the World and Me, que o autor escreveu para o seu filho preparando-o para as desigualdades e o sofrimento decorrentes da discriminação racial nos Estados Unidos. “O meu filho frequenta a mesma escola que o filho dele”, contextualiza o pianista. “Trabalhar sobre este texto é uma questão muito pessoal.” O resultado é um espectáculo que Moran descreve como “muito pesado, escuro, triste e pouco optimista, embora extremamente verdadeiro”.

Optimismo, neste momento da vida do seu país, só se desviar o olhar do presente e pensar nos avanços conquistados após “400 anos de opressão”. Apenas assim, diz, se permite ter esperança. “Porque o sistema está montado contra as nossas possibilidades de sermos bem-sucedidos. Do nascimento na maternidade e do bairro até à universidade, à saúde ou à independência financeira.” E a música, acredita, é também uma expressão desse combate, tanto quanto um exercício de liberdade.

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