União Europeia: a fricção entre o exercício orçamental e o exercício político

O facto de a posição do executivo português se estribar num entendimento de fundo com o maior partido da oposição pode reforçar a sua capacidade negocial. A convergência institucional ao mais alto nível deve ser prosseguida.

Mario Monti, a quem foi incumbida a tarefa de presidir a um grupo de trabalho encarregue de elaborar um conjunto de propostas de reformas para o orçamento europeu pós-2020, afirmava ontem, no contexto de uma entrevista, que “o exercício orçamental deve ser coerente com o exercício político”. Nessa perspectiva, o ex-primeiro-ministro italiano lembrava que as palavras “Trump”, “Brexit”, “terrorismo” e “migrações” não constavam do vocabulário político prevalecente em 2013, aquando da negociação do quadro orçamental relativo ao período 2014-2020. A consequência lógica deste raciocínio era, como não poderia deixar de ser, que a União Europeia deveria redefinir as suas prioridades orçamentais, procurando assim responder a novas necessidades pressentidas pelos cidadãos dos países que a integram.

A Comissão Europeia apresentou ontem a sua proposta de orçamento relativo ao período 2021-2027. Conheciam-se de antemão as dificuldades especiais que rodeavam a execução desta tarefa. A saída de um importante contribuinte líquido como é o Reino Unido, a fortíssima pressão levada a cabo por um leque alargado de países, aparentemente sob a liderança holandesa, no sentido da compressão do orçamento comunitário e a necessidade de uma redistribuição significativa da despesa condicionavam a liberdade de actuação da Comissão Europeia. Uma vez apresentado o projecto, caberá então proceder a um trabalho de avaliação nos termos preconizados por Mario Monti: averiguar o grau de adequação entre o exercício orçamental e o exercício político. É verdade que não é possível responder de forma unívoca a esta questão, dado o pluralismo das opiniões políticas existentes no espaço europeu. Quando muito poderá tentar perceber-se se esta proposta orçamental corresponde ao discurso político produzido nos últimos anos pelas principais instâncias de discussão e decisão europeias, a Comissão, o Conselho e o Parlamento Europeu.

Antes de retirarmos qualquer conclusão, teremos de atentar em cinco factos de especial significado: ao apontar para um volume orçamental correspondente a 1,11% do RNB europeu, esta proposta configura um aumento face aos 1,03% do documento precedente, mas fica ainda muito longe dos 1,3% propostos pelo Parlamento Europeu; no plano da afectação da despesa, constata-se uma compressão muito elevada no domínio das políticas de coesão, superior, aliás, à verificada no âmbito da política agrícola, o que não deixará de ter significado no volume de apoio às regiões mais pobres; observa-se uma valorização de áreas associadas à juventude, à inovação, à investigação científica e à promoção da economia digital; constata-se a priorização atribuída às áreas da defesa, da segurança e do controlo global da imigração; no capítulo das receitas, dão-se passos relativamente tímidos para reforçar os recursos próprios com a instauração de uma taxa europeia a incidir sobre os plásticos não recicláveis ou com o lançamento de um novo imposto sobre as sociedades, na sequência de um processo de harmonização do conceito da matéria colectável, tema que, de resto, anda há dez anos em discussão no seio europeu.

Se, por um lado, a Comissão procura responder a necessidades resultantes de novos fenómenos que interpelam directamente a capacidade de actuação da União Europeia, seja na área da competitividade económica, seja no domínio da segurança dos cidadãos, por outro lado sacrifica-se claramente a Política de Coesão com a decorrente penalização do esforço de convergência entre as regiões mais ricas e as regiões mais pobres.

Assim sendo, e reconhecendo embora a importância de várias das medidas propostas, como é o caso, no âmbito da União Económica e Monetária, da criação de um novo programa de apoio às reformas com uma dotação de 25 mil milhões de euros e de um instrumento europeu de estabilização destinado a assegurar a manutenção dos níveis de investimento nacionais em caso de choques assimétricos significativos, teremos de concluir pela existência de uma relativa distorção entre o discurso proclamado e o projecto orçamental agora apresentado. Essa distorção, se não for devidamente corrigida, poderá levar a uma acentuação das duas grandes linhas de clivagem geográfica que afectam hoje a Europa: a linha Norte-Sul e a linha Oeste-Leste. Não podemos contudo esquecer que estamos apenas no início de um processo que se antevê complexo, prolongado e muito polémico. O Conselho terá um papel decisivo nesse processo e há algumas razões para manter uma expectativa positiva quanto ao que aí se irá passar. Lembremos que em 2013 a Alemanha se associou ao Reino Unido com o intuito de comprimir drasticamente o orçamento comunitário. Agora o Reino Unido está de fora e o contrato de coligação que sustenta o Governo germânico estipula explicitamente a disponibilidade da Alemanha para aumentar a sua contribuição para o orçamento europeu. A França regressou entretanto ao centro da discussão, com uma renovada vontade europeísta. Os países do Sul deram provas de um rigor que surpreendeu muita gente no velho Continente. A Rússia e a Turquia afastaram-se dos padrões europeus. Tudo isto deverá contribuir para que o Conselho se revele uma vez mais como uma entidade suis generis, que não corresponde linearmente à soma dos interesses dos vários governos nacionais nele representados.

O Presidente da República e o Governo português já vieram dizer que esta proposta proveniente da Comissão constitui um mau começo. Assiste-lhes parcialmente razão. O facto de a posição do executivo português se estribar num entendimento de fundo com o maior partido da oposição pode reforçar a sua capacidade negocial. A convergência institucional ao mais alto nível deve ser prosseguida.

 

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