Para a habitação, de boas intenções está o inferno cheio

Após meses de estudo e reflexão, as resoluções parlamentares oscilam entre a ingenuidade e o surrealismo. As boas intenções têm fortes probabilidades de agravar a injustiça social

Ricardo Campos
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Ricardo Campos
Catarina é doutoranda em Arquitectura dos Territórios Metropolitanos Contemporâneos no ISCTE-IUL
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Catarina é doutoranda em Arquitectura dos Territórios Metropolitanos Contemporâneos no ISCTE-IUL

Depois do concurso da Câmara Municipal de Lisboa, que era afinal um leilão, no qual uma cave foi arrematada por 700 e muitos euros, temos novas pérolas. Uma delas é o benefício de 14% em sede de IRS para a tributação de rendimentos prediais. Estou muito expectante para saber quantos filantropos vão reduzir em 20% a renda (e a possibilidade de especular com novos contratos) para obter uma contrapartida fiscal inferior.

Muito curiosas são também as protecções concedidas a partir dos 65 anos. Ninguém, com um pingo de moralidade, tem prazer em desalojar velhinhos carenciados. Mas por que razão cuidar dos idosos é função dos proprietários e não da sociedade? O resultado negativo já se sente: alguns senhorios já recusam fazer ou renovar contratos a idosos, enquanto que outros desistem dos projectos de reabilitação e conservação. Outros ainda, que não podem denunciar os contratos, suspiram — “O sacana do velho nunca mais morre” —, falhando em entender que o velhinho não tem culpa que o Estado o obrigue a brincar à segurança social. Por outro lado, “idoso desprotegido” é um estatuto automaticamente adquirido a partir do momento em que se faz 65 anos, independentemente da condição financeira. Quantos idosos não existem, com reformas bastante simpáticas, a pagarem ninharias por imóveis semi-palacianos, nos centros das cidades? Conheço vários casos.

Não conheço é muita gente interessada em pagar (ainda que com desconto) uma casa que não é sua durante dez anos, muito menos 20. Mas sei que muitos querem comprar e não podem. Neste ponto deparei-me com uma interessante contradição da secretária de Estado da Habitação, Ana Pinho. Numa recente entrevista, diz-nos que a generalidade das famílias está a mudar — as pessoas separam-se, divorciam-se, há mais mobilidade laboral, etc. — e que, por estas razões, não faz sentido voltar a apoiar a compra de habitação própria permanente. Ao mesmo tempo, insiste em “estabilidade” e em contratos de arrendamento a longo prazo (?).

Contudo, verdadeiramente surreal é a possibilidade de resgate de imóveis devolutos, com a contrapartida de uma indemnização e uma renda, impostas ao proprietário. Significa que se, por exemplo, alguém herdar de uma avó uma casa velha, sem ter possibilidades de a reabilitar no prazo de três anos, arrisca-se a não lhe pôr a vista em cima num futuro próximo. Resta-lhe fazer uma múmia da falecida senhora, colocá-la no interior do imóvel e ir lá de vez em quando ligar as luzes e pôr a água a correr — talvez assim ninguém dê conta. Se a lei avançar, enquanto se abusa alegremente da propriedade privada, muitos dos edifícios do Estado apodrecem, e o mesmo permanece impune face à sua conservação, manutenção e uso para interesse público, nomeadamente habitação social.

Em suma, política social à custa dos proprietários. O resultado: mais medo de arrendar, ainda mais escassez de imóveis para este fim e desinvestimento na reabilitação e conservação. A par disto, mais dificuldade em comprar, menor distribuição do património e o perpetuar da injustiça social.

Se o Estado se preocupa tanto com a habitação, mas tolera um mercado laboral selvagem e precário, e reformas que deixam idosos na miséria, então que crie uma oferta pública de habitação social expressiva e abrangente. Mas pelos seus próprios meios, por favor.

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