Alguma coisa acontece na Guiné-Bissau

Se as palavras nos salvassem, os guineenses podiam louvar este seu Abril.

Era bom que o título desta crónica pudesse ser trauteado com a música do Sampa de Caetano Veloso (que não tarda aí com os seus três filhos para cantarem nos coliseus, a 30 de Julho no Porto e a 1 de Agosto em Lisboa). Mas, tratando-se do que se trata, aconselha-se prudência. A verdade é que, no mesmo dia em que Portugal celebrava o 25 de Abril (com alguns oradores a decalcarem títulos e frases de canções, pensando assim garantir ênfase poético a discursos de escasso brilho), ganhava a Guiné-Bissau um primeiro-ministro novinho em folha, Aristides Gomes. Novinho é como quem diz, pois ele já tinha ocupado o cargo durante a presidência de Nino Vieira, entre 2005 e 2007; mas o que importa é que, finalmente, à sétima tentativa, o cargo foi ocupado por alguém consensual, com uma repartição de pastas que contemplou vários partidos mas que terá necessariamente vida breve: em Novembro haverá eleições legislativas e então a escolha há-de caber ao povo de Guiné. Conhecendo, todos nós (e bem melhor do que nós os próprios guineenses), o que ficou para trás, este é mais um momento para respirar de alívio. Não tem havido muitos. E os que houve foram interrompidos por golpes, assassinatos, demissões intempestivas, calamidades várias. Até mesmo esta tomada de posse, que ocorreu de forma pacifíssima no dia 26 de Abril, teve antecedentes pouco recomendáveis: após as eleições de 2014, um desentendimento insolúvel entre Presidente e primeiro-ministro levou o primeiro a demitir o segundo e abrir nova crise perante o espanto geral e alguns protestos indignados.

Claro que face a turbulências e sanguinolências de outrora, onde pontificaram nomes pouco recomendáveis como os dos já defuntos Nino Vieira, Ansumane Mané ou Kumba Yalá, este último interregno foi menos doloroso. Mas devia ter servido de lição. Serviu? Quem ouvir os últimos discursos há-de concluir que sim. Na tomada de posse, disse o primeiro-ministro guineense (que é sociólogo), prometedor: “Vamos elaborar um programa de estabilização e consolidação de conquistas nas diferentes áreas da vida do nosso país, particularmente nos domínios da educação, da saúde, da incitação à economia através da produção e fornecimento de energia e água, para que o país possa fazer face ao período eleitoral que se avizinha.” E antes dissera, num retrato pouco generoso da prática política: “O processo de estruturação das instituições adquire cada vez mais dimensões sombrias. A prática política torna-se cada vez mais uma luta do quotidiano para o acesso de indivíduos a postos que dão acesso de imediato a bens materiais para fins de satisfação pessoal ou de grupo.” Ai, se as palavras nos salvassem…

E o que disse o Presidente José Mário Vaz, o que abriu a crise de 2014? Coisas aparentemente sensatas, que até podiam ser comoventes se tivéssemos o condão de esquecer o resto. Assim: “A confiança depositada neste governo deve ser encarada como uma missão de trabalho e de resultados concretos. A governação é prestação de serviço público. Ser nomeado membro do governo deve deixar de ser considerado um privilégio ou um lugar de conforto e visibilidade.” Ou assim: “Mais do que tudo, este governo tem de ser realista. E concentrar toda a sua energia e recursos no trabalho a fim de melhorar as condições de vida dos guineenses, ou seja, criar condições para realização das eleições legislativas, justas e transparentes. Garantir energia eléctrica para todos. Educação e saúde para todos. Trabalhar para o sucesso da campanha da castanha de caju no corrente ano. Arroz, comida na mesa para todas as famílias guineenses.” E este remate triunfal? “No passado dia 23 de Abril de 2018 fizemos História. Pois celebrámos a democracia no seu pleno, com o fim de uma legislatura completa, sem interrupções, sem mortes, sem violência, sem golpe de Estado, sem lágrimas daqueles que outrora sofreram e viveram sobressaltos, com noites longas e incertezas do dia seguinte. Por outro lado, devemos realçar que as liberdades que foram conquistadas democraticamente pelo nosso povo, designadamente as liberdades de expressão, de manifestação e de imprensa devem ser preservadas e protegidas. Todos devem poder exprimir-se livremente, exporem as suas opiniões, sem serem incomodados.” É verdade, alguma coisa acontece na Guiné-Bissau. Resta saber o quê. Mas se as palavras nos salvassem, os guineenses podiam louvar este seu Abril.

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