Filhos da mãe

Este acórdão vem lembrar-nos que o sistema em que vivemos continua a acusar o desconforto com a autonomia das mulheres.

A atual maioria do Tribunal Constitucional decidiu acabar com o sigilo em torno da doação de gâmetas na procriação medicamente assistida (PMA) tornando essa decisão retroativa e aplicável desde 2006. 

Em resposta a um pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade de normas da lei que regula as técnicas de PMA, o Tribunal decidiu por maioria dar razão neste ponto (e não noutros) ao conjunto de deputados/as do CDS e do PSD, recusando, no entanto, que da identificação de dadores que é consequência da quebra do sigilo pudesse depois advir qualquer consequência jurídica no plano familiar. 

Ou seja, um dador não é pai, reafirma o Tribunal – e contrariando aqui o grupo de deputadas/os. Mas também diz que a identidade pessoal de uma criança que nasça por PMA depende de saber o nome do dador, ainda que desse conhecimento não advenha qualquer implicação jurídica. E trata-se mesmo apenas do nome, dado que a informação genética já estava assegurada e a identidade genética já era conhecida. O Tribunal quer nomes. E, mais, quer nomes de dadores desde 2006, independentemente das vontades e expectativas quer de dadores quer de quem recorreu à PMA.

É que, até agora, todas as pessoas que recorreram à PMA desde 2006 o fizeram sob o pressuposto do anonimato de dadores. Mais: o próprio Tribunal Constitucional tinha já decidido no sentido da constitucionalidade desse anonimato, em 2009. Então, com uma outra formação, o Tribunal Constitucional achou a “paz familiar” um argumento suficiente para se sobrepor à curiosidade sobre nomes de dadores.

Em 2018, o Tribunal subitamente reverte a sua posição com o argumento de que existe uma "crescente" preocupação com as "origens". Cresceu desde 2009?

Quem tem hoje a certeza sobre a sua relação genética com as pessoas que conhece como pais? Quase ninguém, tal como em 2009. Aliás, quando há uns meses se discutiu no Parlamento a redução do prazo antenupcial e a eliminação da presunção de paternidade do marido da mãe, o/as mesmo/as deputado/as que agora pediram a fiscalização não mostraram qualquer preocupação com o facto de esta presunção contribuir para o desconhecimento das nossas “verdadeiras origens”. Antes pelo contrário, deitavam as mãos à cabeça só de pensar na possibilidade de a criança nascer sem pai, ainda que presumido.

A verdade é que, em 2009 ou agora, mesmo que procurassem, algumas pessoas nunca conseguiriam encontrar a sua “origem”. Mas isso não perturba o Tribunal, que agora considera que a curiosidade se torna pelos vistos particularmente atendível (e talvez até de incentivar?) em casos de pessoas que nasçam com recurso, por exemplo, à inseminação artificial. É nesses casos que a mera curiosidade passa a sobrepor-se à paz familiar, que pode agora ser perturbada, e se sobrepõe até à proteção de dados pessoais, uma vez que houve muitas doações feitas sob condição de anonimato que veriam essa condição violada e os dados partilhados pelo Estado. 

Além disto, o Tribunal não se coíbe agora de tecer juízos morais sobre os dadores anónimos, que em seu entender seriam piores do que os outros: “num quadro legal em que prevaleça a regra do direito ao conhecimento das origens, aqueles serão, necessariamente, mais conscientes do seu papel na criação de uma vida e, desta forma, melhores dadores, do ponto de vista ético”, pode ler-se no acórdão. Eugenia ideológica? A sério?

O que mudou então desde 2009? É que reversões de posições – e com esta rapidez – são atípicas num Tribunal Constitucional e contrariam uma expectativa estabilizadora do texto da Lei Fundamental.

É um facto que em 2009 a paz familiar era apenas a de casais de sexo diferente, porque a inseminação artificial estava ainda vedada a casais de mulheres e a mulheres solteiras. Agora, que também há famílias constituídas por casais de mulheres ou por mulheres que decidem engravidar individualmente por via da PMA, passou a haver famílias sem homens e sem paz – e, coincidentemente, o Tribunal parece elevar a curiosidade ao estatuto de princípio constitucional. 

Ou seja, o que parece ler-se desta reversão – e da sua rapidez – é que antes a curiosidade não prevalecia porque a presença de um homem estava garantida e isso pacificava. Agora, que passou a permitir-se às mulheres serem mães sem se fazerem acompanhar de um pai, o Tribunal já não parece valorizar da mesma forma a dita paz familiar. Mais ou menos conscientemente, este acórdão vem lembrar-nos que o sistema em que vivemos continua a acusar o desconforto com a autonomia das mulheres. No fundo, antes de 2009 havia “filhos do pai”; a partir de 2016 passou a haver “filhos da mãe” – e não é por acaso que este termo, ao contrário do primeiro, constitui um insulto (obviamente sexista).  

Consequências? Desde logo, destruir a confiança de casais e de mulheres – com nomes – que já recorreram à PMA no passado, bem como a de dadores cujo anonimato subitamente deixa de ser garantido. E, a partir de agora, eliminar projetos familiares de vários casais e de várias mulheres ao limitar severamente, quer a procura, quer a oferta da procriação medicamente assistida: porque muitas vezes quem doa prefere o anonimato; porque deixa de poder importar-se gâmetas de países como Espanha, em que vigora o anonimato; porque quem recorre à PMA também não pretende mais pessoas envolvidas a perturbar a dinâmica familiar.

E, claro, voltar a acentuar o controlo masculino da sexualidade e da reprodução das mulheres, com um retrocesso na sua autonomia. A mensagem, uma vez mais, é a de que o que se queria eram “filhos do pai”. Abaixo os “filhos da mãe”. Coisas do Género – Plataforma de Reflexão e Intervenção sobre Género e Sexualidade 

Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico

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