A boa e velha hipocrisia de Estado – ou como aprisionamos pessoas que não cometeram nenhum crime e não se chamam Madonna

O modo como os estrangeiros são tratados, desde logo pelo SEF, daria uma excelente sequela kafkiana. Toda a gente sabe que é assim, aliás. Mas a ninguém interessa muito mudar as coisas.

A questão é simples e difícil ao mesmo tempo. A lei de estrangeiros foi alterada em 2017, voltando a permitir que alguém que procurasse emprego em Portugal pudesse entrar no país com a promessa de um contrato de trabalho, uma “manifestação de interesse”. Sucede no entanto que a obtenção posterior da autorização de residência no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras continua a ser tão demorada e tão arbitrária que, na prática, o estrangeiro proveniente de fora da União Europeia que venha trabalhar para Portugal está condenado à ilegalidade. Nada mal para um país que se quer constituir como um espaço de atracção de cidadãos de outros territórios, ajudando a reconstruir a sua sanidade económica e demográfica. Ainda bem que o primeiro-ministro acha que precisamos de atrair imigrantes. Faria se assim não fosse...

Em muitos casos está-se perante pessoas que trabalham e descontam para as Finanças e para a Segurança Social, as portuguesas. Aí já não há problema nenhum e ninguém vê mal em cobrar contribuições a um ilegal. Problema já há, por exemplo, quando um trabalhador imigrante nesta circunstância quer gozar férias no seu país de origem... O que lhe diz o SEF? Que pode sair de Portugal sem qualquer problema... mas não garantem que possa voltar a entrar. Ou seja, pode ser retido na entrada no aeroporto, precisamente por não ter autorização de residência... É o modelo perfeito. A administração cumpre a lei: agenda um momento, algures no tempo, para recolher documentos do imigrante, habitualmente longos meses depois do pedido, e vai depois protelando, de forma arbitrária e desigual no país, a sua legalização; cobra entretanto impostos e contribuições para a segurança social; permite-lhe até a saída de Portugal. Mas claro que não pode garantir que saindo, passadas duas ou três semanas, ele possa voltar a entrar! Afinal, ainda não tem autorização de residência... Isto de ser uma polícia de investigação criminal a tratar da permanência num país tem os seus resultados.

Seria ridículo se não fosse dramático. O resultado são dois. Pessoas aprisionadas em Portugal, que receiam regressar ao seu país para uns dias de férias ou para assistir familiares doentes ou até para ir a funerais porque não sabem se serão impedidas de sair do aeroporto no regresso a Lisboa. Ou pessoas que saem de Portugal, porque lhes parece absurdo que não possam voltar uns dias e entrar, e que são barradas pelo SEF no seu regresso, colocadas na área internacional do aeroporto e recambiadas para a sua origem no primeiro voo de volta.

O modo como os estrangeiros são tratados, desde logo pelo SEF, daria uma excelente sequela kafkiana. Toda a gente sabe que é assim, aliás. Mas a ninguém interessa muito mudar as coisas. Aquilo que interessa são as proclamações políticas genéricas, do tipo “atrair talento”, que são um pouco como o ditado, da “motherhood and apple pie” ninguém pode dizer mal. Ou as photo op que num país sério envergonhariam, com ministros a receber a Madonna na Praça do Comércio, dar-lhe um papelinho e fazer um comunicado de imprensa. E para quando se pode garantir uma “motivação de interesse” para a decência?

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