Os monstros estão à escuta

Um Lugar Silencioso é uma engenhosa série B de género que não mereceria especial atenção se não fosse o golpe formal de ser um filme inteiramente rodado sem diálogos.

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História de uma família que procura sobreviver a uma invasão extra-terrestre tornou-se um êxito de bilheteira e dividiu a crítica
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Todos os anos, o cinema americano parece ter um novo filme de terror que põe o dedo no ambiente social. Aconteceu no ano passado com Foge, de Jordan Peele, onde as tensões raciais dos EUA eram postas a nu num filme de género que se tornou num fenómeno e chegou às nomeações para os Óscares. E parece estar este ano a acontecer com Um Lugar Silencioso, terceira longa realizada pelo actor John Krasinski (mais conhecido pela versão americana da série The Office). Esta história de uma família que procura sobreviver o melhor que pode a uma inexplicável e surpreendente invasão extra-terrestre tornou-se num descomunal êxito de bilheteira e tem dividido os críticos: uns elogiam a sua ousadia formal, outros criticam a perpetuação de um estereótipo antiquado da “família nuclear”.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra, dizemos nós: Um Lugar Silencioso é uma série B de género, ancorada em arquétipos e modelos pré-existentes mas extremamente bem feita, a partir de um guião frágil que se desintegra assim que começamos a perceber que há demasiadas pontas soltas. Mas enquanto o filme corre, de pouco interessa que haja questões que fiquem penduradas, porque Krasinski faz uma aposta que ganha por inteiro: fazer um filme de suspense praticamente sem diálogos, onde tudo é contado de modo puramente cinemático, através da imagem, da montagem, do enquadramento, do trabalho de som. As primeiras palavras apenas são pronunciadas quando já decorreram 40 dos 90 minutos de projecção, e mesmo daí para a frente contam-se pelos dedos a quantidade de frases. Os invasores extra-terrestres têm um ouvido apuradíssimo e é pelo som que se regem, pelo que manter silêncio é a única hipótese de sobreviver para esta família tradicional (mãe, pai e dois filhos, com um terceiro a caminho), ainda por cima marcada pela morte de um outro filho às mãos dos monstros (não é spoiler, é mesmo a primeira cena do filme).

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É uma ideia que Krasinski aguenta com garra ao longo de todo o filme, mais uma prova de que as lições do cinema mudo andam injustamente esquecidas. Mas, depois da projecção, o rasgo desvanece-se e o que falta no filme começa a vir ao de cima. É que, sem o truque do silêncio, e sem a garra de Emily Blunt e Millicent Simmonds (a revelação do Museu das Maravilhas de Todd Haynes), esta seria apenas mais uma fita de género em linha de montagem, igual a tantas outras. John Krasinski soube tirá-la dessa gaveta, mas seria boa ideia não esperar do filme mais do que um engenhoso exercício formal de género.

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