Eusébio antes de Eusébio

Ruth usa a contratação de Eusébio pelo Benfica, em 1960, como uma radiografia transversal da sociedade portuguesa à beira da guerra colonial através do clubismo.

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Menos um filme sobre futebol do que sobre o que o rodeia: filiação clubista, manobras de bastidores
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Curioso: eis um filme sobre futebol onde o futebol nunca se vê, e um filme sobre Eusébio onde a personagem é simplesmente uma espécie de peça num tabuleiro muito maior e que lhe escapa. Ruth, estreia na longa-metragem de António Pinhão Botelho, filho de João Botelho, a partir de um argumento da mãe, a jornalista e escritora Leonor Pinhão, concentra-se na disputa entre o Sporting e o Benfica pela contratação de Eusébio, no período 1958-1961. E, através dessa guerra de bastidores (que não é assim tão diferente das guerras de bastidores do futebol actual…) e dos clubismos ferrenhos, desenha uma curiosa radiografia transversal da sociedade portuguesa à beira da guerra colonial. A relação entre a “metrópole” e as “colónias”, a condescendência com que os “pretinhos” eram tratados (naquele momento espantoso em que responsáveis falam da ausência de racismo num bar onde os africanos são apenas os criados); as divisões sociais de classes; o patriarcado instituído (onde as mulheres são meros acessórios); o modo como o futebol já então era um agregador de tribos e elites; a ligação já então muito íntima entre o futebol e o poder (divertidíssimo aquele momento em que um adepto do Belenenses fala da “possidonice sportinguista e da maçonaria benfiquista”).

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O futebol dentro das quatro linhas, esse, nem vê-lo — e isso acaba por ser apropriado, porque este é menos um filme sobre o desporto-rei do que sobre tudo o que o rodeia, da filiação clubista sincera às manobras mais ou menos correctas de bastidores. Eusébio adolescente, ingénuo e alheio a tudo, é um mero peão num xadrez de influências no qual não tem palavra a dizer; Eusébio somos nós, cidadãos comuns, sem influência no que se passa à nossa volta, e esta história é um pretexto para olhar para nós, portugueses, e perceber que não somos tão diferentes do que éramos há 50 anos. E é uma boa história, bem escrita, que António Pinhão Botelho ilustra escorreitamente, de modo talvez excessivamente demonstrativo, ainda tentativo (é um primeiro filme, é normal que haja tropeções). O bom trabalho de casting de actores e o cuidado na reconstituição de época não chegam no entanto para avivar o ritmo inerte, molengão, nem para afastar o ocasional aroma de telefilme. Ainda assim, Ruth é mais um bom exemplo de que é possível fazer em Portugal cinema acessível ao grande público sem condescender para com o espectador. Se não o fazemos mais não é porque não saibamos; é porque não queremos.

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