Sr. Donald, por favor, não feche a janela!

Apesar das limitações a um comércio “verdadeiramente livre e justo”, uma guerra comercial não beneficiará ninguém.

Frédéric Bastiat, na sua famosa obra Pétition des Fabricants de Chandelles (1846), descreve, de uma forma sarcástica, uma hipotética petição feita pelos fabricantes de velas à câmara de deputados para que estes protejam o comércio de velas de um concorrente estrangeiro desleal: o Sol. Segundo os fabricantes de velas, era necessário promulgar uma lei ordenando o encerramento de todas as janelas, aberturas e frinchas de forma a impedir que a luz solar entrasse nas casas prejudicando “a lucrativa indústria com que temos vindo a enriquecer o país”.

Vem isto a propósito da recente “guerra comercial” desencadeada pelo Presidente norte-americano e das consequentes retaliações por parte das autoridades europeias e chinesas, através da imposição de direitos aduaneiros sobre determinados produtos. Será, no entanto, que esta “guerra” faz sentido?

Para responder a esta questão, importa perceber o “racional” que está por detrás da decisão do Presidente norte-americano e que poderá ser traduzido pelo seguinte: “A América faz parte de uma economia global e a única forma de manter o nível de vida e de emprego dos americanos é através de uma parceria clara entre o governo e as empresas que impeça a entrada de produtos estrangeiros e assegure às empresas americanas a viabilidade necessária para competirem no mercado internacional.”

Apesar de este tipo de “racional” ser muito popular nos EUA (e mesmo em alguns setores europeus), o certo é que assenta num conjunto de equívocos que importaria esclarecer.

Em primeiro lugar, e tal como refere Paul Krugman no seu popular livro Pop Internacionalism (1996), um dos mais populares equívocos é o de que “os países estão em competição uns com os outros tal como as empresas“. De acordo com Krugman, o “comércio internacional não tem a ver com competição mas sim com trocas mutuamente benéficas”. Esta é, aliás, uma conclusão a que David Ricardo já tinha chegado em 1817 quando concluiu que as possibilidades de consumo de um país aumentam em resultado do comércio internacional, uma vez que permite a um país consumir uma maior quantidade e diversidade de bens do que seria possível se se mantivesse em autarcia (situação de autossuficiência sem comércio com o exterior), ou seja, caso dependesse exclusivamente da sua própria fronteira de possibilidade de produção. Stuart Mill (1806-1873), a este propósito, referia que “o interesse do comércio internacional reside numa utilização mais eficiente das forças produtivas existentes no mundo”.

Um segundo equívoco assenta na ideia de que a imposição de barreiras alfandegárias (i.e., direitos aduaneiros) tem um efeito positivo no bem-estar económico. Na realidade, o prejuízo para os consumidores é evidente, não sendo compensado pelos ganhos que daí possam tirar os produtores domésticos nem pelo aumento das receitas do Estado (mesmo que, por sorte, estas venham a ser adequadamente redistribuídas).

Um terceiro equívoco prende-se com a ideia de que deve existir uma “parceria estratégica” entre o Estado e as empresas nacionais no “combate” às empresas estrangeiras. Krugman, a este propósito, refere que “o apoio do Estado a uma determinada empresa pode ajudar essa empresa a competir no exterior mas retira recursos de outras indústrias domésticas”.         

Por fim, a ideia de que o protecionismo permite manter o emprego também parece ser um equívoco (no curto prazo dependerá mais da procura agregada e no longo prazo da taxa natural de desemprego do que, propriamente, das restrições ao comércio). A este propósito, Maurice Obstfeld, o reputado economista-chefe do FMI e especialista em comércio internacional, afirmou recentemente que “as tendências [negativas no trabalho e nos salários] são mais devidas às mudanças tecnológicas do que ao comércio internacional”, acrescentando que “as disputas em torno do comércio [internacional] distraem da agenda vital, ao invés de a fazerem avançar”.   

Importa referir que as conclusões anteriores não invalidam que o atual modelo em que se desenvolve o comércio internacional não deva ser aperfeiçoado.

Com efeito, e conforme demostrou Stolper-Samuelson (1941), o comércio não tem um efeito uniforme em toda a atividade produtiva de um dado país, na medida em que beneficia alguns setores desse país em detrimento de outros (apesar da economia ganhar como um todo), o que significa, neste quadro, que a mobilidade do fator trabalho é fator essencial (e a educação fator central nessa mobilidade). Na realidade, o comércio internacional, ao assumir-se como substituto da mobilidade internacional dos fatores produtivos, conduz a uma igualização dos preços dos referidos fatores, o que significa que em setores de atividade em que exista concorrência internacional a remuneração dos fatores produtivos tenderá a convergir (por exemplo, é expectável que os salários ajustados pela produtividade de um trabalhador do setor têxtil em Portugal e na China ou no setor automóvel em Portugal e na Alemanha venham a convergir com beneficio provável para o trabalhador chinês e prejuízo para o trabalhador português, no primeiro caso, e prejuízo para o trabalhador alemão e beneficio para o trabalhador português, no segundo caso).

Adicionalmente, também é claro que alguns dos pressupostos subjacentes aos ganhos resultantes do comércio livre não se verificam, nomeadamente no que respeita à não existência de um quadro de funcionamento harmonizado do mercado de trabalho, o que conduz, muitas vezes, a que a competitividade de algumas empresas assente no denominado “dumping social”.  

Nestes casos, mais do que limitar o comércio internacional, importaria desenvolver instrumentos que permitissem regular adequadamente os fluxos de comércio, impedindo os fenómenos de “dumping social”, mas garantindo, simultaneamente, que as empresas dos países mais pobres ou em vias de desenvolvimento possam participar ativamente no comércio internacional.

Em resumo, apesar das limitações que possam existir a um comércio “verdadeiramente livre e justo”, o certo é que parece consensual que uma guerra comercial não beneficiará ninguém, conforme aliás defende o insuspeito presidente da Reserva Federal de São Francisco (Jonh Williams) ao afirmar que “uma guerra comercial ou uma resistência importante à globalização poderá ter um impacto muito negativo sobre a economia, assim como no investimento e no emprego”, colocando em causa uma recuperação económica global que, nas palavras de Martin Wolf, é “real mas frágil”.

Daqui resulta que a petição dos fabricantes de velas contra o inimigo externo – o Sol –, parodiada por Frédéric Bastiat, continua a não fazer qualquer sentido (convém apenas é garantir que o Sol quando nasce é para todos).

E, já agora, Sr. Donald, por favor, não feche a janela!

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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