O gabinete de maravilhas de José de Guimarães

Um diálogo entre as obras do artista e a colecção do museu: esta é a resposta de José de Guimarães ao convite para celebrar os dez anos do Museu do Oriente.

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Exposição de José de Guimarães no Museu do Oriente em Lisboa Daniel Rocha
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Trinta anos de Fundação Oriente, dez anos de Museu do Oriente: a efeméride é assinalada por uma exposição individual de José de Guimarães, a ocupar todo o piso térreo desta última instituição, onde o artista apresenta uma antologia de trabalhos seus que se conjugam com parte da fabulosa colecção Kwok On, pertencente ao espólio do museu.

Kwok On, segundo nos conta Sofia Campos Lopes, da Fundação Oriente, foi um chinês que reuniu um espólio de cerca de 600 objectos relacionados com as diferentes manifestações performativas de teatro e ópera chineses. A colecção foi depois doada a um sinólogo francês amigo do fundador, Pimpaneau, que decidiu criar um museu Kwok On em Paris, ao mesmo tempo que ia acrescentando peças à colecção já existente.

O museu andou por vários locais em França, passando por Nice e terminando na Rue du Théâtre, em Paris, onde fecharia em 1994. Peripécias várias acabaram por ditar o seu destino final em Lisboa, no Museu do Oriente, onde diversas exposições temporárias têm conseguido estabelecer frutíferas relações com este acervo. Este conjuga-se aqui com o colorido e a fantasia bem conhecidos do estilo de José de Guimarães, que sempre, desde os seus primeiros trabalhos, manifestou uma abertura singular às formas, aos estilos, aos objectos que vinham de outras culturas.

Em José de Guimarães, nas obras que vem criando há praticamente cinco décadas, cruza-se um arco de expressões artísticas que circula entre o Ocidente – o Brasil e o México, que lhe inspiraram séries conhecidas – e o Oriente, passando pela Tailândia, a China e o Japão, país onde tem realizado trabalhos de arte pública reconhecidos internacionalmente. Até há bem poucos anos, era o único artista português cujo nome era imediatamente identificado nos círculos da arte contemporânea desses países. Nesta exposição, é possível entender como a linguagem que é a sua encontra eco em culturas muito diferentes da europeia, que não cessam de o intrigar e fascinar. Um Museu do Outro Mundo é em primeiro lugar a demonstração da capacidade da obra de José de Guimarães se manifestar como única, viva e activa no estabelecimento de ligações multiculturais que são uma das grandes preocupações da contemporaneidade.

A exposição, que tem curadoria de Nuno Faria (o director artístico do GIAJG, o Centro de Artes José de Guimarães, fundado pelo artista em Guimarães), teve também projecto de arquitectura de interiores de Pedro Campos Costa, que dividiu o espaço expositivo em três núcleos: uma Sala Preta e uma Sala Branca, ligadas através de uma Sala Dourada. Como os nomes indicam, as paredes destes espaços estão pintadas das cores referidas nos nomes, em que as duas primeiras convocam a alteridade entre os princípios fundamentais do Yin e do Yang, próprios das culturas e religiões de matriz oriental, e a terceira a exuberância “mundana e dourada”, nos dizeres do arquitecto, de uma cidade contemporânea de, por exemplo, um rico país do Triângulo Dourado.

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De facto, trata-se também muito mais prosaicamente de um caminho da escuridão próxima do absoluto para a totalidade da luz branca e infinita que remata a exposição. Campos Costa fala, e bem, dos labirintos das antigas cidades do Extremo Oriente, onde era tão fácil a um ocidental perder-se como confrontar-se com a mais extrema pobreza. Neste espaço, José de Guimarães dispõe uma série de caixas, a que chamou sarcófagos ou relicários, coloridas com tons vivos e iluminadas por néons, onde se arrumam objectos diversos pertencentes à sua colecção pessoal de antiguidades. De certo modo, estas caixas, algumas das quais recebem ainda o título de Favelas e que se incluem numa Série Brasil, são pequenos museus em miniatura, lembrando-nos não sem algum sentido de humor os antigos gabinetes de curiosidades onde os europeus abastados da era moderna guardavam objectos curiosos, jóias, preciosidades e obras de arte, numa miscelânea conceptual apenas reunida pelo gosto do coleccionador.

Esses gabinetes são hoje considerados, como é sabido, os precursores do museu actual. Ora, se estas caixas portáteis estão também presentes no trabalho do pintor desde os seus inícios – a primeira exposição que fez, nos anos 60, incluía já um recipiente deste tipo –, o gosto de coleccionar e até a actividade de curador (que é no fundo, o que realiza também, ao escolher e expor objectos em dispositivos destinados a recebê-los) é também um facto nestas peças, como assinala Nuno Faria no texto que acompanha a exposição. Peças pré-históricas em jade juntam-se aqui a brinquedos actuais, figuras rituais africanas ou recortes de revistas coloridas. Estamos perante uma enciclopédia, em que as mais inesperadas associações podem surgir ao sabor do critério alfabético. Mas esta é igualmente uma enciclopédia na qual podemos ver, através de um dispositivo que lembra as maquinetas de ver imagens inventadas pelos precursores do cinema, máscaras chinesas, sombras recortadas indonésias; ou, noutro lugar, uma escultura da temível deusa Kali.

A referência ao cinema não vem aqui por acaso. Na Sala Dourada, que é na realidade um corredor, há duas máquinas de produzir sonhos (ou, dito de outra forma, de produzir imagens): uma slot machine, aqui encimada por duas estatuetas da dinastia Tang, e um projector de cinema artesanal, um objecto curiosíssimo a que não falta um fonógrafo acoplado. Entramos depois na Sala Branca, disposta como um palco de alguma peça de guião desconhecido. Toda o espaço se replica em espelhos imensos que criam, eles próprios, um segundo labirinto visual.

Se na Sala Preta se pedia implicitamente ao visitante que descobrisse passo a passo, sem referências espaciais, o que lhe era desvelado a pouco e pouco, aqui trata-se de destrinçar o que é real do que é miragem. As pinturas-esculturas em papel artesanal colorido, que o artista tem criado nas últimas décadas, partilham o espaço com trajes cerimoniais, esculturas indianas multicoloridas, um búfalo à escala real destinado a suporte de cremações, ou com os trajes e máscaras utilizados numa dança ritual indonésia, e que simulam um leão-javali que representa o deus Vishnu. Na parede, a série de pinturas de 2017, Oceanos, uma declinação dos léxicos de signos visuais que José de Guimarães cria desde a década de 60.

Na realidade, esta exposição é mais um contributo para o estudo e a apreciação da obra do pintor, desta feita em diálogo com a maravilhosa colecção Kwok On pertencente ao Museu do Oriente. O fascínio de José de Guimarães pelas culturas ditas “primitivas” manifesta-se desde que começou a criar, corria a década de 60, a guerra colonial e a comissão de serviço em Angola. Aí, tomou contacto com a arte etnográfica africana, e foram essas formas sintéticas e gráficas que recriou quando concebeu a sua própria linguagem. Em Guimarães, no CIAJG, Nuno Faria tem sempre tido a preocupação de associar a obra do fundador às expressões artísticas mais variadas, sem olhar às divisões estabelecidas entre a alta e baixa cultura. É disso que se trata aqui, mesmo que o nosso fascínio pelo exótico seja bem real, e o reconhecimento da qualidade das peças orientais se torne uma evidência inatacável. Onde quer que esteja, José de Guimarães tem a capacidade rara de se abrir ao estrangeiro, ao diferente, ao exótico, ao outro. Anula a distância que o separa desses mundos, incorpora-os, torna-os seus e, por consequência, nossos.

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