Em vez da igreja, o piano foi para o lagar

O azeite correu no Terras Sem Sombra. Na Herdade do Marmelo, de onde se avista o olival intensivo e na busca por um tesouro frágil e em vias de extinção. A Linaria ricardoi é uma planta frágil que só existe em Ferreira do Alentejo e Beja. Está a morrer com a cultura intensiva e com os herbicidas.

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Um piano, uma pianista e 11 peças de música dos séculos XVII a XX interpretadas entre centrifugadoras de azeitona e depósitos cilíndricos com milhares de litros de azeite no lagar da Herdade do Marmelo. O desafio de conciliar o impossível foi proposto à jovem norte-americana Pauline Yang, no passado sábado à noite em Ferreira do Alentejo, no espaço que “nunca se imaginou” para a música e com acústica.

A igreja matriz de Ferreira do Alentejo teria sido, na tradição do Terras sem Sombra (TSS), o local para o concerto, mas a recusa da diocese de Beja em abrir os seus espaços de culto à fruição de música, ainda que sacra, deu um novo rumo ao festival que procura descentralizar a cultura e valorizar o património local. A Sovena, dona do lagar assinado pelo arquitecto Ricardo Bak Gordon, abriu a sua nave principal à entrada de um piano. “Pudemos dar o salto”, disse José António Falcão, director-geral do TSS. “A nova catedral”, evocou, não está longe da liturgia cristã. O “fio dourado” do azeite servia também para iluminar as igrejas.

As 210 cadeiras brancas não bastaram para todos os que apareceram para o ponto alto do quinto fim-de-semana da edição deste ano do festival Terras Sem Sombra. As cores metálicas das máquinas passaram a rosas e azuis intensos e a noite que também “valorizou a arquitectura contemporânea portuguesa” rendeu-se a Pauline Yang. Para Ferreira do Alentejo estava prometido Um Roteiro de Sentimentos e a pianista que liga a sua vida a causas sociais, como levar música às crianças no Médio Oriente e aos hospitais, ofereceu Johann Sebastian Bach, Domenico Scarlatti, Felix Mendelssohn, Fryderyk (Frédéric) Chopin, Johannes Brahms, Enrique Granados, Robert Schumann, Ferenc (Franz) Lizt, e William Bolcom.

Linaria ricardoi

Ferreira do Alentejo é a capital do azeite e parte da transfiguração da paisagem abrangida pelo perímetro de rega do Alqueva, onde o olival intensivo e o já superintensivo entram, velozes, pelos campos de cereais e de olival tradicional. Considerado o maior do país, o lagar da Herdade do Marmelo espreita as grandes extensões do novo olival com forte impacto na biodiversidade e no território.

A Linaria ricardoi, rara, frágil, com alguns centímetros de altura e sempre de caule milimétrico, e agora em época de floração é um dos tesouros naturais do Baixo Alentejo que se ressente da mudança. Foi a ela que o programa ambiental do TSS deste fim-de-semana deu atenção. As culturas intensivas, superintensivas e herbicidas estão a expulsar a planta de pétalas roxas e violetas que se encontra sobretudo em Ferreira do Alentejo e Beja. Está em perigo de extinção, segundo as publicações científicas, e deve o seu nome de género (Linaria) ao inglês Philip Miller e de espécie (ricardoi) à memória de António Ricardo da Cunha, conservador do herbário da Escola Politécnica, que fez a primeira recolha de um exemplar, em 1882, em Beja.

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A presença da "Linaria ricardoi" tem sempre associada a presença da "Adonis annua" (foto do meio) ou lágrima-de-sangue e da "Cynara tournefortii" (foto mais acima)

Das edições anteriores, José António Falcão retém o que considera serem “vitórias”, com o desejo de que o destino mude também para a planta endémica da região. “A ribeira do Vascão,afluente do Guadiana, em Almodôvar, continua limpa” assegurando a preservação do saramugo, e há hoje “uma maior sensibilidade para o montado”.

Na visita a um campo de olival antigo, próximo de Ferreira, em apoio à acção de biodiversidade do TSS, os biólogos da EDIA, empresa de desenvolvimento do Alqueva, acompanham voluntários numa contagem voluntária de Linaria ricardoi no terreno. “A perda de uma espécie traz sempre efeitos em cadeia”, diz Rita Azedo, uma das biólogas, pelo que “a perda do património biológico é sempre importante”. A Linaria ricardoi não está sozinha, tem associada a presença de outras plantas endémicas e igualmente frágeis e em risco de extinção como a Adonis annua, conhecida por lágrima-de-sangue, e a Cynara tournefortii.

O interesse nestas espécies levou há alguns anos a Quercus a adquirir terrenos de micro-reservas biológicas de Lynaria ricardoi. Uma foi para esse efeito, em Cuba, mas agora é numa sua outra, em Beringel, que teve por motivação principal a também rara e em vias de extinção Echium boissieri ou viboreira-gigante, que mais aparece a Lynaria ricardoi. Também a EDIA faz a monitorização anual desta espécie, agora em época de floração e que só se deixa ver até Junho.

O melhor que se sabe desta planta, por enquanto, observa Rita Azedo, é que se sabe pouco sobre ela: “Não se sabe as suas propriedades medicinais nem alimentares. O risco de desaparecer é uma perda de biodiversidade”.

O PÚBLICO foi ao Terras Sem Sombra a convite do festival

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