A forma como hoje trabalhamos "é muito disfuncional"

Vamos pagar um preço pela forma como estamos a trabalhar actualmente, não só do ponto de vista da performance, mas também da saúde, afirma José Soares. O professor catedrático de fisiologia escreveu um livro com estratégias para minimizar o stress causado por ambientes profissionais desgastantes. E diz que não é líder quem quer, mas quem pode.

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stress crónico provoca alterações estruturais no cérebro e acelera o processo de envelhecimento, avisa José Soares, 59 anos, professor catedrático de Fisiologia na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto que já trabalhou com a selecção nacional de futebol e atletas de alta competição. O que é que as pessoas e as organizações podem fazer para evitar o burnout? As estratégias para prevenir este estado extremo de exaustão passam por exercício, pouco, "bastam entre seis a oito mil passos por dia", alimentação e sono adequados e técnicas de relaxamento, explica no livro Reload. Menos Stress. Melhor Performance, da Porto Editora, que foi lançado este mês.

A forma como trabalhamos actualmente não é “performante”, escreve. O que quer dizer com isto?
A forma como estamos a trabalhar é muito exigente. O ambiente actual do mundo das empresas e organizações caracteriza-se por quatro aspectos fundamentais - never offline, elevada pressão para obter resultados, longas horas de trabalho, viagens frequentes. São aspectos que favorecem o aparecimento de quadros de stress e de fadiga. É um ambiente muito disfuncional. E por vezes há quem entre em burnout [síndrome de esgotamento profissional]. Nas empresas, à semelhança do que acontece com os atletas, a capacidade de recuperação é fundamental. O meu objectivo, com este livro, é tentar ajudar as pessoas a lidar com isto usando uma série de estratégias que designo como os quatro “R” : aprender a recuperar (“recover”), a fazer refuel, a repensar a forma como se encara o stress (“rethink”) e, depois, a reenergizar-se ("reenergize").

Na área da saúde, este problema sente-se com especial acuidade. Têm sido divulgados vários estudos que indicam que a percentagem de médicos e de enfermeiros em burnout é muito elevada.
Sim. Ainda no outro dia vi uma notícia alarmante que referia que a quarta causa de morte nos EUA são os erros médicos. Muitos estudos em que me baseio para explicar os efeitos do stress e da fadiga são justamente feitos em ambiente clínico. Se um camionista tem que parar ao fim de um número de horas e ser substituído, por que é que um médico pode fazer 24 horas seguidas num serviço de urgência? Num estudo que simula o ambiente de um bloco operatório, quando os médicos têm que fazer duas e três coisas ao mesmo tempo, aumentam exponencialmente a probabilidade de erro. O problema é que vamos pagar um preço pela forma como estamos a trabalhar actualmente, não só do ponto de vista da performance (cometemos mais erros, somos menos criativos), mas também da saúde.

Então, o que há a fazer é mudar a forma como trabalhamos?
Isso vai ter que se regular, mas neste momento não podemos fazer muita coisa para alterar a situação, não podemos mexer muito nesta forma de trabalhar. Assim, a questão fundamental é saber como lidamos com o problema. Até porque a longo prazo tudo isto vai ter um peso - a imunidade baixa, a susceptibilidade a doenças aumenta, nomeadamente a doenças cardiovasculares, infecciosas, oncológicas. E também há consequências na função cognitiva. O stress crónico provoca alterações estruturais no cérebro. Por exemplo, o volume do hipocampo diminui.

A Organização Mundial da Saúde afirma que o stress é actualmente uma epidemia. É assim tão grave?
O impacto do stress sobre a saúde está hoje muito bem demonstrado. Uma das consequências imediatas é a forma como afecta o sono na maioria das pessoas. E sonos pouco reparadores ou demasiado curtos aumentam o risco de muitas doenças, como a diabetes, a obesidade, doenças cardiovasculares.

Mas estão sempre a atirar-nos com exemplos de pessoas que dormem muito pouco, como o Presidente da República…
Sim, mas eles são outliers [casos atípicos].  As guidelines internacionais dizem que é necessário dormir entre sete a nove horas por noite. No trabalho há muitas vezes um stress brutal, há muita gente a entrar às 8 da manhã e a sair às 9 da noite. Como somos pouco eficientes - e se isto não vai a bem vai a mal -, é preciso trabalhar mais horas. Um exemplo: perde-se muito tempo nas reuniões. Costumo fazer um questionário [nas empresas onde é consultor] e é verdadeiramente impressionante a forma como as pessoas classificam o custo-benefício das reuniões. Não começam a horas, têm objectivos pouco claros, há gente que é convocada que não está lá a fazer nada. No final, os colaboradores perguntam: o que é que estive aqui a fazer? Houve uma senhora de um banco que me disse que não podia beber água durante o dia porque, se o fizesse, tinha que ir à casa de banho e não tinha tempo por causa das reuniões. Este ambiente é altamente desestruturante. Por isso temos que investir na forma como nos organizamos e como acomodamos este impacto.

Afirma que não é líder quem quer, que existe uma predisposição biológica para exercer liderança.
Isso deu muita polémica! Conheço uma CEO que é o exemplo claro da disfunção, ela própria é a imagem do stress. Ser líder é importante fundamentalmente em momentos de turbulência, não quando tudo corre bem. O que sabemos é que biologicamente há alguma predisposição para exercer liderança para responder de forma mais adequada ao stress. Os verdadeiros líderes são aqueles que, em momentos de turbulência e incerteza, conseguem manter a calma.

Entre as estratégias que propõe, há algumas técnicas de relaxamento. Mas não é preciso ter tempo para isso?
As técnicas de relaxamento não são necessariamente demoradas nem complicadas. Hoje há técnicas relativamente simples que ajudam a “derivar” o pensamento.

Votando ao problema do tempo e da falta dele. Diz que os colaboradores nas empresas que param de 90 em 90 minutos são uma minoria, 14%.
As pessoas têm que parar. Temos que desacelerar e travar com uma certa frequência. O que está a acontecer é que continuamos com o mesmo ritmo até às 8 horas da noite e depois temos um sono inadequado.

Mas não será fácil para um chefe aceitar que um trabalhador pare de 60 em 60 ou de 90 em 90 minutos, como propõe.
Quem não pode parar por dois ou três minutos? Qual é a diferença entre sair para fumar ou  sair para apanhar um pouco de sol? Quando digo parar é parar durante o dia e depois ter sono adequado. Por que razão estamos tão preocupados em fazer as mais diversas dietas e não tratamos do sono com cuidado? É preciso estar atento aos sinais. Há uma frase que uso muitas vezes: temos que estar atentos aos murmúrios do corpo porque vai chegar a uma altura em que este vai gritar.

É possível aprender a gerir o stress?
A mudança de comportamento é muito difícil. Quando eu falo de exercício, é fundamentalmente para a função cognitiva, não para a saúde. Para a melhor funcionalidade do cérebro só temos praticamente duas coisas, o exercício e a alimentação. E a grande vantagem do exercício para a função cognitiva é que a chamada dose-resposta é muito baixa. Enquanto no exercício para reduzir o colesterol, a diabetes, a hipertensão a dose-resposta implica intensidade, para a função cognitiva basta muito pouco. A quantidade de exercício necessária para estimular a produção de algumas substâncias – endorfinas, dopamina, serotonina, oxitocina, noradrenalina  – é muito reduzida. Basta fazer seis, sete, oito mil passos por dia. Ou seja, basta andar 20 ou 30 minutos por dia, é suficiente e não é necessária intensidade. Se as pessoas integrarem isso nos seus hábitos à hora do almoço e ao fim do dia chega, não é preciso ir para o ginásio.

Mas também deixa claro que é necessária muita energia para ter motivação para mudar. 
Há uma coisa que é decisiva: as pessoas têm que perceber o impacto do stress e da fadiga não só na sua capacidade produtiva, mas também na saúde, na doença. Inclusivamente, hoje sabe-se que também acelera o envelhecimento. Nos passos dos alcoólicos anónimos, estes só passam da primeira para a segunda etapa quando assumem que têm um problema. Se se desvaloriza o problema, como é que se vai mudar? 

No livro diz que a felicidade também tem uma matriz biológica. O que é que quer dizer com isto?
Ser feliz é óptimo. Mas querer ser feliz é um bocadinho como querer ser alto. Não está ao alcance de todos. É um bocadinho leviano, há uma certa desonestidade intelectual em querer fazer passar a ideia de que toda a gente pode ser feliz. Por vezes as pessoas não são felizes não por que não querem mas porque não podem. É preciso ter respeito e tolerância pelas pessoas mais negativas. Nem tudo é possível de modificar, nem tudo se treina.

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