A decadência das Grandes Superfícies Culturais

É estratégico na economia da atenção destas sempre mais caras superfícies culturais que se aumente a circulação de artistas celebridades e a arte seja apresentada como um lifestyle equivalente à música pop.

Foto
A criação da primeira Grande Superfície Cultural foi uma decisão política populista de escala sem precedentes: o Louvre, com todas as colecções imperiais, foi oferecido pelos revolucionários franceses às ululantes massas de Paris DANIEL ROCHA

A criação da primeira Grande Superfície Cultural foi uma decisão política populista de escala sem precedentes. O Louvre, com todas as colecções imperiais, foi oferecido pelos revolucionários franceses às ululantes massas de Paris para fruição gratuita e analfabeta.

A partir desta altura acontece o “colapso de contexto” da ideia e do objecto artístico. A arte passa a ser igualitária porque já não é só a corte que a pode ver. As instituições museológicas passam a controlar as assunções contextuais e tornam-se dependentes da audiência — qualquer que seja o público pretendido o público é a totalidade da população.

Um facto relevante no que se virá a chamar The Artworld (Danto, 1962), é que até aos anos 60 do Séc. XX foram artistas os directores dos museus ou estiveram ligados à sua fundação (Royal Academy com J. Reynolds ou o MoMA com M. Duchamp). O Museu do Chiado foi fundado por artistas em 1911 e o primeiro director foi o pintor Carlos Reis. O último director artista foi o pintor Eduardo Malta entre 1959 e 1967. Como retratista de Salazar e do Cardeal Cerejeira a sua nomeação política foi naturalmente muito contestada. O que aconteceu entretanto foi uma modificação nos critérios de aferição da capacidade de direcção de um equipamento artístico.

Em 1959, C.P. Snow escreve o artigo The Two Cultures argumentando a passagem da tutela das artes e humanidades para ciência. A influência desta ideia leva a que as áreas científicas ocupem sistematicamente o lugar dos artistas: historiadores, críticos, arquitectos, comissários e curadores...

Eu próprio, como artista, e preenchendo todas as formalidades exigidas, passei pela experiência de me candidatar a director do Museu do Chiado. Por duas vezes enfrentei pacientemente um júri que me deu nota máxima mas fui duplamente preterido pela razão de não ter sido nunca director de nenhum museu!

Desde o final do séc. XVIII a relação dos artistas com o poder sofreu grandes alterações. Segundo Adorno e Horkheimer em The Culture Industry: Enlightenment as Mass Deception (1944): aquilo que acorrentou o artista foi a pressão (e a drástica ameaça) de ajustar o negócio com a integridade artística. Da Vinci, Bach, Haendel, Kant, Hume, assinavam as cartas para reis e príncipes com: “O Seu Mais Humilde E Obediente Servidor”. Hoje os artistas dirigem-se a chefes de estado e príncipes financeiros pelo primeiro nome, mas estão inexoravelmente agrilhoados à completa iliteracia artística destes seus benévolos e não inocentes mecenas.

É evidente que a ideia de Indústria Cultural foi mal entendida pelos ajudantes dos governos e dirigentes culturais no ocidente. Adorno defendia na realidade o extermínio efectivo da cultura das elites e da cultura popular (high and low culture), que considerava tóxicas e castradoras de liberdade. O que ficou erroneamente desta interpretação no discurso político foi a ideia de que a cultura é uma indústria tout court (que não é), conduzindo contraproducentemente a decisões políticas envolvendo milhões para satisfazer uma orientação necessariamente mais populista.

Esta fissura democrática do novo mundo da arte permitiu em Portugal, por exemplo, que a operação de Versalhes em 2012, ou a embaraçosa representação de estado na Bienal de Veneza em 2013, fosse impunemente sancionada com absoluta e abrangente cobertura política, e onde foram usados arbitrariamente não-quantificados recursos públicos sem concurso ou escrutínio.

Um comportamento político com decisões autocráticas sobre o gosto público faz pensar, caricaturalmente, na Coreia do Norte durante o regime de Kim Il-sung em que a arte estava nacionalizada, os artistas eram marcados nas orelhas, as tintas e os pincéis eram fornecidos administrativamente, as representações não figurativas eram proibidas e os únicos dois temas autorizados eram a vida do Grande Líder ou da sua mãe. A importância da arte neste país era tão grande que o símbolo do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte ostenta centralmente um pincel ladeado por um martelo à esquerda e uma foice à direita.

Em 2011, o coleccionador Charles Saatchi publica no The Guardian um artigo intitulado Charles Saatchi: the hideousness of the art world, onde manifesta o seu desprezo pelo desporto dos vulgares super-ricos compradores de arte: “Eurotrashy, Hedge-fundy, Hamptonites; oligarcas e oilgarcas da moda; e de negociantes de arte com níveis de auto-estima masturbatórios.” E que: “Não é surpresa, portanto, que o sucesso dos negociantes de arte seja baseado no poder místico que a arte agora opera sobre os super-ricos. Os novos coleccionadores, alguns dos quais se tornaram bilionários muitas vezes através dos seus negócios, rastejam de gratidão perante o seu traficante de arte ou consultor de arte, que os ajudou a parecer refinados, com bom gosto e rodeados de obras-primas obscenamente caras.”

O admirável mundo da arte passa por Basel em Junho, Veneza em Julho (com festas nos mega iates), Miami em Dezembro e natal em St. Barts. Os estados deixaram de poder concorrer com os super-ricos e delegam nestes néscios visuais a definição do gosto público, permitindo que construam com orçamentos ilimitados os seus próprios museus (ou sequestrem equipamentos já existentes — caso flagrante do Museu Berardo), nos melhores terrenos dos centros das cidades para celebração da sua vaidade e poder.

Os Museus de Arte Contemporânea (públicos e privados) competem e modelam a sua programação para exposições que comprimem despudoradamente a alta com a baixa cultura (pornogenia), procurando conteúdos que resultem num cada vez maior número de visitantes e presença nos media. Razão pela qual o departamento de marketing é hoje o mais poderoso na gestão destas estruturas; é estratégico na economia da atenção destas sempre mais caras superfícies culturais que se aumente a circulação de artistas celebridades e a arte seja apresentada como um lifestyle equivalente à música pop.

Para combater a indiferença da audiência porque não mudar de nome deixando cair a palavra Museu? Refresca-se a identidade e promove-se a instituição não como um depósito de coisas antigas e imagens paradas mas como um sítio de experiências. Em 2017 o Indianapolis Museum of Art passou a chamar-se Newfields: A Place for Nature and the Arts e os artistas são convidados a desenhar campos de mini golf, jardins da cerveja ou iluminações de Natal… Em 2021 abre em Los Angeles o Lucas Museum of Narrative Art (uma nave espacial de $1bn) com a missão declarada de ser o museu mais inclusivo e acessível do mundo e onde as divisões artificiais entre high art and popular art estarão ausentes.

A arte [e alguns artistas] mantém a aspiração de ter efeito e sentido neste fine art-pop continuum (Alloway, 1972) mas no enquadramento presente só dispõe de uma promíscua, infantilizada e facilitada maneira de ser — como as próprias Grandes Superfícies Culturais: 1. Brilhante; 2. Cara; 3. Colorida; 4. Espelhada; 5. Figurativa; 6. Grande; 7. Que tenha algum tipo de movimento (não estar parada); 8. Que possa ser vista por crianças e adolescentes; 9. Que incorpore tecnologia (software, leds, etc); 10. Ser um bom fundo para selfies; 11. Ser parecida com alguma coisa reconhecível ou compreensível; 12. Ser divertida.

Sugerir correcção
Comentar