Que Berlioz danado!

A boa direcção de Frédéric Chaslin segurou esta música que às vezes parece desmoronar-se, com tumultos e gritarias, cheia de imagens e de teatralidades, onde todos os meios orquestrais possíveis e imaginários são usados.

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Berlioz Pierre Petit

Foi uma noite mefistofélica nos Dias da Música em Belém. Tratava-se de A Danação de Fausto, de Berlioz, com muita gente a subir ao palco, entre solistas, coros juvenis, coro e orquestra. E estava também uma multidão no Grande Auditório para ouvir esta diabólica obra do compositor francês, escrita em 1846. Berlioz chamou “légende dramatique” a esta estranha ópera-concerto, original e exuberante, ambiciosa e desafiante. Em primeiro lugar, um desafio para quem a faz. A boa direcção de Frédéric Chaslin segurou esta música que às vezes parece desmoronar-se, com tumultos e gritarias, cheia de imagens e de teatralidades, onde todos os meios orquestrais possíveis e imaginários são usados.

O Fausto de Goethe era uma paixão antiga de Berlioz, que o leu avidamente na juventude. Mas esta Danação segue o seu caminho próprio, literário e musical, entre marchas militares, danças, canções populares, bebedeiras, momentos líricos e cenas dramáticas, num fulgor narrativo bem captado pelo maestro e pela Orquestra Sinfónica Portuguesa que se mostrou excepcional diante desta dificílima partitura. Porque das harpas aos trombones, das flautas aos contrabaixos, das percussões aos violinos, esta obra danada não pára de inventar e reinventar as possibilidades da orquestra e das suas infinitas conjugações e articulações possíveis para a expressão mais fulgurante e mais original.

Em relação aos cantores solistas, é preciso destacar o acutilante barítono Philippe Rouillon, que foi um Mefistófeles terrível, porque quase simpático no seu tom persuasivo, capaz de levar Fausto à perdição com uma prestação vocal muito rigorosa. Menos brilhante foi Aquiles Machado no papel de Fausto: apesar do seu belo timbre de tenor operático, fraquejou aqui e ali nas mais agudas dificuldades e trouxe alguma insegurança à cena do ponto de vista rítmico. Mas são fraquezas humanas, que até ficam bem a este Fausto um pouco ingénuo. Margarida, sem emocionar demais, foi a potente mezzo-soprano Béatrice Uria-Monzon, que cumpriu com segurança o seu papel.

Mas Mefistófeles também venceu porque teve um precioso aliado que ajudou a levar Fausto aos infernos: o coro, que tem um papel absolutamente fundamental nesta obra. O óptimo trabalho do Coro do Teatro de São Carlos contribuiu para tornar este “inferno” musical uma noite de prazer e desafio, também para os espectadores: “vinho, canções, vida!”

Esta Danação não é obra para relaxar no sofá. E também por isso é tão forte ouvi-la ao vivo: ela exige aos espectadores uma atenção permanente, porque é uma partitura desconcertante, capaz de inverter um Ámen em irónica anedota (é só um rato que morre no forno da cozinha), capaz de gozar com o lirismo ingénuo e ao mesmo tempo ser verdadeiramente romântico, capaz de nos assustar com fúrias imprevistas e súbitos pianíssimos, capaz de nos trocar as voltas ao tempo, com acelerações tempestuosas e lentidões infernais.

O público aplaude de pé muita coisa nos tempos que correm, já não é sinal de excepção. Mas no final do concerto este levantar parecia necessário, independentemente do generoso e justo aplauso ao trabalho dos músicos. Era preciso descomprimir, esticar as pernas. Sai-se desta Danação com muita música na cabeça e algumas inquietações. E com um certo cuidado, claro, para não nos deixarmos enganar por qualquer belzebu ao virar da esquina, que quer que assinemos por baixo. Cruzes, canhoto!

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