No princípio (do fim) é a eutanásia... E depois?

Temos a figura do “testamento vital” ainda a dar os primeiros passos e quer acelerar-se tudo isto em nome de quê?

O recente livro Reanimar?, da autoria de António Maia Gonçalves, especialista em Medicina Interna e em Cuidados Intensivos, é uma obra escrita com profundo humanismo e baseada numa rica experiência de situações concretas, envolvendo questões deontológicas e bioéticas perante a iminência da morte. Um notável livro de uma pessoa que se confessa “apaixonada pelo milagre da vida” e que me ajudou a reflectir sobre a eticidade da relação necessariamente assimétrica entre o médico e o doente, entendida como um modo de serviço e não de poder.

Vem isto a propósito da eutanásia, sobre a qual o autor também discorre, baseado no fundamento hipocrático de há 25 séculos e – cito – no “princípio da autonomia e respeito pela vontade do doente, que fazem parte da boa prática clínica, mas que não é uma autonomia que desresponsabiliza os médicos e que anula a relação de confiança com os seus doentes”.

O médico é, por essência, um mediador, cuja acção deve radicar na primazia do doente e na troca permanente de confiança, de humanidade, de competência, de generosidade, de disponibilidade. Em suma, de responsabilidade.

A eutanásia é um tema divisor, onde os absolutismos não são aconselháveis. Estamos diante do bem soberano que é a vida (não referendável) e da sua relação com a medicina, a bioética, a filosofia, a ciência, o direito, a religião.

O que mais confrange em alguns debates ou opiniões é o simplismo de pseudo truísmos, a superficialidade, a trivialização, a generalização abusiva. É necessário termos a humildade de perceber quão cómodo é discutir o sofrimento e a morte em abstracto face ao seu dramático enfrentamento em concreto. E nisso o livro citado é bem elucidativo.

Na moral cristã que é a minha, a vida é um dom de Deus. Somos usufrutuários, não donos do nosso corpo. A vida é para a pessoa, mas não pertence à pessoa. E, como disse Jean Guitton, “a maneira de preparar a morte é verdadeiramente uma virtude ou o seu contrário”.

Não se trata, todavia, de um assunto que se esgote ou que se deva impor apenas no plano religioso, a não ser na opção de cada um.

A eutanásia tem sido definida como “uma intervenção ou omissão deliberadas, com a intenção de terminar a vida de alguém, a seu pedido (informado, consciente e reiterado), quando este apresente sofrimento intolerável, estando em fim de vida”. Os defensores da sua legalização falam também de “evitar sofrer inutilmente” através de uma “morte digna e assistida” (sublinhados meus).

São facilmente perceptíveis a sua inconstitucionalidade (“a vida humana é inviolável”, art.º 24 da CRP) e, sobretudo, a ambiguidade de conceitos, a ténue e perigosa linha entre o uso e o abuso da lei e a corrosão da ética e deontologia de cuidar quando não é possível curar. É que, na “morte clinicamente assistida”, não se trata só da liberdade de morrer, mas da necessidade de alguém que mate ou que para isso contribua, legalizada pelo Estado.

O que é “um sofrimento intolerável”? Como se mede? O que comporta, para além da dor? E como se define a fronteira do “sofrimento inútil”? É até um paradoxo um Estado legalizar a eutanásia quando a evolução científica, técnica e farmacológica oferece cuidados paliativos para uma morte digna.

Normativizar o sofrimento é uma insegura e perigosa estrada que vai da dor física ao sofrimento psíquico, senão mesmo existencial. E estará o legislador tão seguro de formular uma norma inatacável sobre a natureza livre, consciente e informada do pedido de eutanásia? A determinação da “vontade de morrer” de alguns doentes não exprime, necessariamente, o pedido para ser eutanasiado. Todos estes conceitos, aliás, podem resvalar danosamente, como o comprova o abuso da lei na Holanda, onde a eutanásia já atinge 3% dos óbitos anuais. 

Aliás, continua a haver muita confusão de conceitos, deliberada ou inconsciente, pondo tudo no mesmo saco: eutanásia activa e passiva, suicídio assistido, ortotanásia, obstinação terapêutica. E há actos e condutas conformes às exigências éticas e boas práticas clínicas que não configuram a prática da eutanásia. Por exemplo, a recusa de tratamentos objectivamente inúteis, o uso mais digno e humanista de cuidados continuados e sedação paliativa e a recusa da obstinação ou futilidade terapêuticas.

Sobre esta, cito a própria posição da Igreja Católica: “A cessação de tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados esperados, pode ser legítima. É a rejeição do ‘encarniçamento terapêutico’. Não que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o facto de a não poder impedir.

Temos a figura do “testamento vital” ainda a dar os primeiros passos e quer acelerar-se tudo isto em nome de quê? Face à “inutilidade do sofrimento” nesta “sociedade de cansaço”, quem garante que certas expressões eugénicas em torno do envelhecimento e da dependência não se seguirão, em nome de um pretenso “avanço civilizacional”?

Nestas matérias, sabe-se como as coisas começam, nunca se sabe como acabam...

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