Bill Cosby: A impunidade e as vítimas foram a tribunal e ganhou o MeToo?

O comediante, acusado por cerca de 60 mulheres de violação ao longo de décadas, é a primeira estrela condenada da era #MeToo. Mas ainda há muito por mudar, defendem os comentadores — e espaço para o regresso de Louis CK, Weinstein ou Charlie Rose.

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Allred e algumas das mulheres que representa contr Cosby
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Allred e algumas das mulheres que representa contr Cosby TRACIE VAN AUKEN/EPA
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Andrea Constand e a advogada Dolores Troiani
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Andrea Constand e a advogada Dolores Troiani BRENDAN MCDERMID/Reuters
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Há um ano, o julgamento de Bill Cosby por crimes de agressão sexual foi anulado, porque o júri não conseguiu chegar a um veredicto. Quinta-feira, um novo júri condenou-o por drogar e violar Andrea Constand, uma de cerca de 60 mulheres que o acusam do mesmo comportamento. No meio destes dois julgamentos Harvey Weinstein caiu e centenas de vozes, mais ou menos célebres, ergueram-se contra o assédio e a violência sexual. Disse-se #MeToo e agora há quem veja uma (lenta) mudança a começar – mas também alguns acusados a regressar.

A força do caso Harvey Weinstein e das investigações subsequentes veio em parte de Bill Cosby e tornou-se parte da desgraça de Bill Cosby. O clima em que o New York Times e a New Yorker contaram com os testemunhos de dezenas de actrizes e outras trabalhadoras para denunciar os alegados abusos e assédio cometidos pelo produtor foi forjado em anos de acusações cada vez mais audíveis contra homens poderosos dos media como Roger Ailes e Bill O’Reilly, da Fox, mas também contra o “pai da América” Bill Cosby, além da retórica e dos casos Trump com mulheres. A celebridade e os rostos reconhecíveis de Ashley Judd, Gwyneth Paltrow, Asia Argento, Uma Thurman ou Rose McGowan emprestaram o seu estatuto de membros de proa da sociedade de espectáculo à credibilidade das vítimas.

Quem achava que este segundo julgamento de Cosby podia ser nova nulidade “obviamente avaliou mal o poder e a urgência do momento #MeToo”, escreve Lorraine Ali no Los Angeles Times. Com a condenação (ainda sem sentença e com direito a recurso) de Bill Cosby, assistimos à “morte lenta da impunidade das celebridades”, defende Megan Garber na revista Atlantic. É “um marco para a era #MeToo”, titula o Guardian.

Mas “mesmo depois de Bill Cosby ter sido desmascarado, demorou quase meia década a levá-lo a prestar contas no tribunal”, escreve, prudente, Daniel d’Addario na revista Time. “É uma cronologia que sugere que as mudanças trazidas pelo movimento #MeToo estão só a começar.” Nas mentalidades, na Justiça e na esfera pública — alguns dos acusados da vaga MeToo, como Charlie Rose, Louis CK, Mario Batali ou Matt Lauer estarão a planear um regresso mediático.   

Megan Garber lembra as declarações de um dos membros do júri do julgamento do ano passado, falando da vítima de Cosby Andrea Constand: “Vejamos bem: ela foi a casa dele com a barriga à mostra e incenso e sais de banho. Que raio?” Para a comentadora, “a cultura americana, que tanto fala de democratização, desenvolveu uma espantosa capacidade de arranjar desculpas para as suas celebridades”. Cita os nomes do costume – Woody Allen, Roman Polanski ou Donald Trump, entre outros. “Têm sido protegidos pela própria física da fama” e Cosby beneficiava não só dos prazos legais de prescrição de certos crimes, quando era acusado há décadas, mas também de “preconceitos sociais”, como “a desconfiança em relação às mulheres”. Agora, acredita a colunista, “o #MeToo tornou-se #WeToo” – de “eu também” a “nós também”.

As águas turvas do mar do consentimento

O júri de 2017 demorou 50 horas, ao longo de seis dias, a deliberar que nada conseguia deliberar. O júri deste mês reuniu-se durante 14 horas, ao longo de dois dias e os sete homens e cinco mulheres proferiram o seu veredicto – culpado de três crimes de agressão sexual agravada, incluindo penetração sem consentimento, penetração sem consentimento enquanto inconsciente e o uso de fármacos para evitar resistência. A pena pode ir até 30 anos de prisão.

A condenação, cuja sentença pode demorar mais de um mês a chegar — fora o recurso que a equipa de Bill Cosby quer interpor —, é um resumo das principais linhas de acusação de tantas mulheres contra o “pai da América”, caído em desgraça ao longo das últimas décadas. Bill Cosby, hoje com 80 anos, era até há um punhado de anos uma das figuras tutelares de uma certa América, aquela que cresceu com ele na figura de Cliff Huxtable, o pai respeitável e bonacheirão do clã do Cosby Show, um integrador e normalizador televisivo dos negros na classe média norte-americana. É uma referência que Kanye West há tempos twittava em letras garrafais ser “inocente!” e cujo estatuto o comediante Hannibal Buress ajudou a abalar quando, num espectáculo em 2014, lembrou que Bill Cosby era há décadas acusado por várias mulheres de violação.

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O vídeo do espectáculo tornou-se viral e meses volvidos vários órgãos de informação voltavam a dar voz às queixosas – mulheres de diferentes idades e percursos que contavam que Cosby lhes sugeria algum tipo de conselho ou ajuda, lhes dava comprimidos supostamente para uma simples maleita mas que se revelavam ser barbitúricos e depois despertavam com a noção de que estavam a ser ou tinham sido violadas ou alvo de abuso sexual.

Em 2015, 35 das suas acusadoras eram capa da revista New York e o número não parava de crescer. Estima-se que ronde as 60. Em Junho de 2017, uma dessas acusadoras, Andrea Constand, antiga funcionária do departamento de basquetebol da Universidade de Temple, que tinha Cosby como mentor, levou-o a tribunal. Não foi permitido a outras mulheres testemunhar contra Cosby. Desta vez, Heidi Thomas, Lise-Lotte Lublin, Chelan Lasha, Janice Baker-Kinney e a ex-modelo Janice Dickinson repetiram perante o júri uma história familiar: o mentor que ia ajudá-las, os sedativos que as deixaram sem capacidade de reacção, o abuso sexual.  

Da advogada da defesa de Cosby, Kathleen Bliss, ouviram críticas – para ela, o movimento MeToo, a partilha online de experiências de assédio por milhares de mulheres (e alguns homens) na esteira do caso Weinstein, é uma forma de “governo de multidão”, comparando-o à caça às bruxas do tempo de McCarthy. “Questionar quem acusa não é envergonhar as vítimas”, insistiu. Mas as provas passadas de que Cosby tinha admitido usar sedativos para ter sexo com mulheres, que lhes pagou pelo seu silêncio e os relatos sólidos de muitas delas, por um lado, e as tentativas frustradas do comediante de manter a sua agenda de espectáculos e o cancelamento de alguns contratos, por outro, indicavam que a sua defesa – que o sexo tinha sido consensual e que as mulheres que o acusavam queriam apenas ser famosas ou extorquir-lhe dinheiro – estava enfraquecida.

“No veredicto de Cosby é a primeira vez que vemos um destes homens [poderosos] a ser responsabilizado criminalmente”, lembra Jessica Valenti, colunista do Guardian e autora de vários livros sobre feminismo e política. A léguas do estrelato de Cosby, já em Janeiro os EUA assistiram à condenação do responsável médico da equipa de ginástica feminina dos EUA, Lawrence G. Nassar, por abusos a mais de 150 raparigas – esse foi o primeiro julgamento a ter o enquadramento pós-MeToo.

“[Agora,] finalmente podemos dizer que se acredita nas mulheres, e não só no #MeToo, mas num tribunal onde estão sob juramento, onde testemunham com verdade, onde foram atacadas, onde foram caluniadas”, disse a advogada Gloria Allred à saída do tribunal de Montgomery County em Norristown, na Pennsylvania. Allred representa 33 alegadas vítimas de Bill Cosby, bem como várias mulheres que acusam Harvey Weinstein de assédio.

De Hollywood vieram muitas reacções que clamam ter-se feito justiça. “Obrigada ao juiz e ao júri. Obrigada à sociedade por ter acordado”, escreveu a actriz Rose McGowan (que assinou nos últimos meses o primeiro programa de TV e o primeiro livro pós-MeToo). “Finalmente alguma justiça para as vítimas de Bill Cosby”, clamou a actriz Elizabeth Banks. “Mais importante do que tudo, não esqueci as muitas mulheres que agrediste e silenciaste com o teu poder. Já vais tarde!!!”, disse o comediante e apresentador Larry Wilmore. Também no Twitter, a editora Tina Brown resumiu: “Finalmente uma condenação. Finalmente justiça.”

Foi a mesma Tina Brown, antiga editora da revista Talk de Harvey Weinstein, que há dias revelou que o entrevistador Charlie Rose ponderava fazer uma série sobre e com outros homens acusados de assédio sexual, em que os entrevistaria. Rose foi acusado de assédio por oito mulheres. O Los Angeles Times e a Hollywood Reporter indicam também que há relatos de que o comediante Louis CK, que admitiu ser um exibicionista sexual e ter assediado várias mulheres na esteira de uma investigação do New York Times, está, como o jornalista Matt Lauer e o chef Mario Batali, ambos alvo de acusações de assédio, a ponderar o seu regresso.

Algumas publicações, como o site Vox, têm recordado que, apesar dos “marcos” como o da condenação de Cosby, o destino de muitos destes homens acusados de assédio e outros crimes de natureza sexual depois de perderem os seus empregos e as boas graças da opinião pública tende a ser um exílio dourado, dadas as suas posses, ou retiros de reabilitação como aquele em que Harvey Weinstein se tem refugiado.

Quinta-feira, o New York Times perguntava se o momento MeToo influenciara ou não o veredicto de Bill Cosby. A conclusão parece ser que há, sim, uma conjugação de factores da qual o movimento Time’s Up e o poder das redes sociais que tornou possível o ímpeto #MeToo fazem parte. Mas também que o que é consentimento, por exemplo, apesar de muito discutido nos últimos meses, continua a ser um mar de águas turvas. Melissa M. Gomez, perita em júris e autora de Jury Trials Outside In, avisa que o momento endureceu as posições  de quem opta pela credibilidade das vítimas e os cépticos que vêem no processo mais problemas do que benesses. “O #MeToo não apaga isso. As pessoas não vão mudar de ideias [quanto a esse tipo de polarização]”, alerta.

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