Com um jornalismo neutro, eu nunca me comprometo

Em Portugal, sempre que o jornalismo é incómodo torna-se rapidamente ilegítimo.

Nos últimos 15 dias li duas entrevistas a António Mexia, por alturas da sua recondução como presidente da EDP. Uma no Jornal de Negócios, a outra na Visão. Li também declarações suas na Lusa. Essas entrevistas foram feitas em Washington. A EDP pagou as viagens. Segundo a Visão, António Mexia “escolheu os Estados Unidos da América – mercado cada vez mais relevante para a eléctrica – para inaugurar o novo mandato em que foi investido recentemente”. Contudo, quando lemos as quatro páginas que tanto o jornal como a revista lhe dedicam, verificamos que as entrevistas foram realizadas num hotel de Washington, tal como poderiam ter sido realizadas num hotel do Chiado.

Porque é que a EDP se dá ao luxo de pagar a vários jornalistas uma estada em Washington só para entrevistar um homem que trabalha diariamente em Lisboa? Porque as manobras de charme endinheiradas resultam sempre. Vai-se a ver, e ambas as entrevistas são sobre os grandes projectos da EDP, mais os clássicos “desafios para o futuro”, reservando-se duas modestas perguntas sobre o processo judicial em que António Mexia e João Manso Neto são arguidos, por suspeitas de corrupção. Pergunta da Visão: “Quanto à investigação judicial, aos CMEC, em que é arguido, já disse estar confiante de que as coisas se resolverão e explicarão. Mas o que fará se for deduzida acusação? Interrompe o mandato?” Pergunta do Jornal de Negócios: “Em relação ao processo dos CMEC, coloca a hipótese de alguma vez poder vir, eventualmente, a ser acusado?” A que se segue uma outra, talvez a minha favorita: “Sente-se perseguido pela justiça neste processo?”

Não é minha intenção apontar o dedo aos jornalistas que fizeram estas duas entrevistas, porque se outros estivessem no seu lugar provavelmente teriam feito o mesmo. A única coisa que quero sublinhar, e daí ter trazido para aqui um exemplo concreto, é que este sempre foi o tipo de jornalismo mais comum em Portugal. Conheço-o desde que leio jornais: perguntas muito abertas, cheias de alcatifas e almofadas, rodeadas de cuidadosos condicionais, e com a notável capacidade para juntar numa só frase, que termina com a arriscadíssima palavra “acusado”, as expressões “coloca a hipótese”, “poder vir a ser” e “eventualmente”, não vá António Mexia sentir-se ofendido com a pergunta. Hoje é assim com António Mexia, que continua todo-poderoso, como era assim com Ricardo Salgado nos tempos do DDT.

Este, claro está, é o jornalismo que toda a gente aprecia e acerca do qual nunca se ouvem críticas. Pessoas extremamente bem-educadas, em ambientes cordiais, a conversarem pacatamente, sem darem azo à erupção de questões deontológicas. O outro jornalismo, aquele que chateia, dói, confronta, escrutina e arrisca, é logo vilipendiado, que isto é um país de gente mansa e delicada. O respeitinho é muito bonito.

Ricardo Costa já escreveu no Expresso um óptimo texto (“Isto não é não jornalismo”) a justificar a exibição das imagens da SIC. Leiam-no, por favor. Eu quero apenas declarar que há duas coisas que me deixam abismado sempre que se discutem as ligações entre justiça, jornalismo, política e os todo-poderosos. A primeira é o fantasma da república dos juízes. A segunda é o fantasma do jornalismo justiceiro, destruidor de vidas e liberdades. São, de facto, patéticos fantasmas: nunca existiram, e contudo são invocados há décadas para impedir o escrutínio mais elementar. Em Portugal, sempre que o jornalismo é incómodo torna-se rapidamente ilegítimo.

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