Descentralização sem regionalização?

A descentralização socialista parece confundir-se com um mero processo de "municipalização".

Em janeiro de 2016, o Governo prometeu aos portugueses um ambicioso Plano de Descentralização, "a pedra angular [de uma] reforma do Estado (...) capaz de aprofundar a democracia local, melhorar os serviços de proximidade e estimular o crescimento económico". Como? Transferindo competências para os municípios, alargando os poderes e garantindo a eleição direta dos órgãos das áreas metropolitanas e reforçando as competências e a legitimidade política das CCDR. Tudo isto com uma inusitada urgência, já que todo o quadro normativo, financeiro e institucional teria de estar pronto até ao final de 2016.

Dois anos depois, a prometida reforma está reduzida a uma nebulosa e titubeante negociação sobre a transferência de umas quantas atribuições do Estado central para as autarquias locais e o valor do respetivo envelope financeiro.

O Governo dispensou estudos e enjeitou debates e o PS, acolitado pela esquerda radical, chumbou mesmo no Parlamento a criação de uma comissão eventual para acompanhar o processo de descentralização. Talvez porque, como sublinham os autores de um estudo recente sobre as áreas metropolitanas, encomendado pela Associação Comercial do Porto, "não existe qualquer documento que sustente uma estratégia mais ampla de descentralização, nem sequer é claro que exista tal estratégia (...). Aliás, a proposta não consubstancia um desiderato estável que permita debater vantagens e inconvenientes em sede de discussão pública".

A verdade é que o país tem estado alheado deste processo e dos debates que o mesmo reclama, julgando que se trata de um mero "negócio" de partilha de tarefas entre a administração central e as autarquias locais. Nada de mais errado. Não foi essa a palavra dada por António Costa! Nem é (só) dessa reforma que o país precisa para tornar a ação do Estado mais racional, eficiente e profícua.

O que deveria estar em causa era uma reforma substantiva da administração do território que ponha termo à anacrónica centralização política e administrativa do país. Uma reforma que acabe com a omnipresença do Estado central na gestão de miudezas, desde o licenciamento estival dos vendedores de bolas de Berlim até às obras de reparação dos telhados das escolas de 2.º ciclo. Mas também com a omnipotência que lhe permite administrar, à distância, estradas, escolas, hospitais, áreas protegidas, etc... e a teleguiar da capital os programas, os instrumentos e os fundos de desenvolvimento regional.

Como libertar o Estado central destas excentricidades e garantir racionalidade nas políticas territoriais e na gestão pública, a qualidade e a eficiência na provisão de serviços de proximidade, o escrutínio público e a participação democrática?

No âmbito do relatório que estou a elaborar para o Conselho da Europa (The role of national authorities in successful decentralisation processes), coloquei esta pergunta, vezes sem conta, a governantes, deputados e autarcas de mais de duas dezenas de países, da Arménia à Finlândia, da Ucrânia ao Reino Unido. A resposta foi sempre a mesma: o que faz o sucesso de um processo de descentralização é uma repartição clara, equilibrada, consequente e simultânea de poderes, competências e recursos pelas diferentes entidades regionais, metropolitanas e locais. O que pressupõe a transferência, para todos os níveis territoriais, tanto de tarefas operacionais como de poderes de decisão efetivos em áreas estratégicas, a clarificação do campo de intervenção e do papel de cada entidade e a salvaguarda dos princípios de autonomia e subsidiariedade.

O caminho escolhido pelo Governo não é esse. A descentralização socialista parece confundir-se com um mero processo de "municipalização".

Tudo gira em torno dos municípios e da sua vontade para acolher novas funções e da sua legitimidade para eleger os presidentes das CCDR’s. Um caminho que, para além de criar a ilusão de uma reforma que o não é, agrava a entorse de que sofre o atual modelo de governança regional, onde o Estado e o setor público continuam a reinar num modus operandi cada vez mais solitário e endogâmico.

A intenção de pôr os autarcas a eleger e a mandar (?) nos presidentes das CCDR não deixa de causar perplexidade, não só pelo imbróglio jurídico que prenuncia, mas sobretudo pelo absurdo político que configura. O futuro presidente diretor-geral reportará ao governo que o nomeia e tutela ou aos autarcas que o elegeram? De que legitimidade, autonomia e meios disporá para administrar equipamentos e serviços públicos e implementar as medidas territoriais necessárias ao cumprimento da sua missão, a coordenação e o desenvolvimento regional?   

Como infelizmente ficou demonstrado com os incêndios de 2017, o Estado falha porque quer continuar a decidir e a controlar tudo e todos a partir da capital. Desde o ordenamento à gestão florestal, da proteção civil à segurança dos cidadãos. Estas falhas só poderão ser colmatadas com a instituição de um poder regional com legitimidade política e meios adequados para governar o território, assegurando a articulação e coordenação de políticas e atores que permita maior eficácia e racionalidade à intervenção do Estado.

A questão que se coloca é simples: pode um processo de descentralização digno desse nome prescindir da regionalização? A descentralização é uma alternativa à regionalização ou são ambas necessárias e complementares para acabar com o centralismo que penhora o futuro do país?

Portugal precisa deste debate. Urgentemente. Primeiro, porque a tentativa de criar uma alternativa de cariz municipal/metropolitano à regionalização arrisca-se a petrificar, definitivamente, a centralização e o centralismo no nosso país. Segundo, porque o sucesso desta reforma pode estar comprometido se o Governo continuar a privilegiar o tacticismo político e a visão de curto prazo e não for mais ambicioso no alcance, nas dimensões e na substância da reforma.

A descentralização não é boa ou má em si mesma. Oferece oportunidades, mas também riscos. Tudo depende da forma e do intuito com que é implementada. Se queremos que a descentralização seja realmente a reforma do Estado de que o país precisa para ser mais competitivo, coeso e organizado, então não podemos perder esta oportunidade de fazer o debate que ainda falta sobre a regionalização. Haverá coragem política para assumir este debate? Deputado do PSD e Relator Geral dos Poderes Locais e Regionais do Conselho da Europa

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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