Abril com sabor a mangas

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Manuel Roberto

Caí de uma mangueira gigante com cerca de 20 metros de altura. Uma queda que mais parecia não ter fim. Podei galhos e mais galhos com o corpo todo, até cair estatelado no areal do chão. Estoicamente, pus-me de pé por breves instantes, pois estava diante de uma plateia de comparsas que me aguardava num solo que julgava firme. Tempo insuficiente para gritar o nome da minha tia, e de seguida voltar violentamente à terra, inanimado.

Foi então que soube o que era uma coluna vertebral. Embati fortemente de costas e senti a dor de não me conseguir expressar. Balbuciei algumas palavras, mas já não estava ciente de mim.

O melhor de tudo isto foi ter compreendido que estava dotado para voar. Tinha oito anos e o corpo entregava-se ao instinto da satisfação de todas as dúvidas e curiosidades.

A razão da minha queda teve que ver com pássaros. A azáfama ensurdecedora de tanta alegria junta em solo firme distraiu-me da concentração, ao almejar alcançar um ninho que se encontrava lá mesmo no alto da mangueira para ver, à vez, crias que ouvíramos chilrear. Os únicos pássaros que consegui ver, além de umas estrelas, foi quando caí. Eram tantos que me rodeavam a cabeça, alternados com umas estrelinhas que até me enjoavam. Desde que me conheço que admiro pássaros, como os que em muitos fins de tarde se reuniam naquela mesma mangueira a definir o seu futuro.

Em Moçambique, em Abril de 1974, lembro-me de ter feito uma dança de braços abertos a simular asas em movimento. Dancei ao som da pureza de tambores de legos, que só na minha cabeça ressoava, quando a tia Virgínia me explicou o que estava a acontecer. Falou-me em liberdade e de já podermos voar como pássaros. Julgo ter sido por isso que passei a admirá-los, ou talvez a invejá-los.

Naquela manhã, acordei muito cedo, porque o meu pai me fizera uma surpresa: oferecera-me, na véspera, uma bicicleta. Uma linda Órbita cinzenta, em segunda mão. Enquanto ela me transportava, em círculos à volta de uma papaeira, numa espécie de dança de sedução, distraí-me com o corrupio de aves em bando que sobrevoavam as ruas da vila. Quando dei por mim, estava abraçado à papaeira. Tinha-me enlaçado contra ela. Tornou-se a minha maior confidente e deu papaias do tamanho da minha imaginação.

Vivia em João Belo, actual Xai-Xai, quando soube que em Portugal o cravo tinha sido eleito a melhor flor da época. Como em Moçambique não havia cravos, os mais velhos recortavam em forma de coração ou de flor todos os tecidos vermelhos que encontravam para os colocar na lapela. Havia festa na vila! Desfile de carros, buzinadelas pelas ruas, abraços e beijos. Braços içados com dedos em forma de V de vitória. E eu sem saber o porquê daquela algazarra pelas ruas, não fosse a tia Virgínia.

Com ela, também ouvi pela primeira vez uma expressão em francês: “Je commence!”, cantarolava vezes sem conta. Estudava no sétimo ano de antigamente. Porém, já a ouvia falar na determinação dos moçambicanos que eram oprimidos e de portugueses que começavam a vida do nada em Moçambique. Tudo por causa de um regime colonial que agora chegava ao fim.

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