Isto não é jornalismo

É de uma encenação que verdadeiramente se trata – de uma encenação sobre a investigação das entidades judiciais e o libelo acusatório, não de uma genuína investigação jornalística independente, com recurso a fontes autónomas, contraditórias e sem ligação entre si.

Fui apanhado de surpresa e fiquei, depois, estupefacto, com a divulgação de vídeos de interrogatórios judiciais ou escutas telefónicas a José Sócrates, Ricardo Salgado, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro e outras personagens da chamada Operação Marquês, num longo folhetim apresentado ao longo da semana pela SIC e SIC-Notícias. É certo que o conteúdo de alguns desses interrogatórios e escutas já fora tornado público por certos órgãos de informação, essencialmente ligados ao grupo Correio da Manhã, mas terá sido a primeira vez que isso aconteceu através de media considerados de referência – e, sobretudo, com uma amplitude e um tratamento dramático verdadeiramente inéditos, sob a responsabilidade editorial de jornalistas prestigiados como Ricardo Costa e Cândida Pinto.

O folhetim da SIC e SIC-Notícias não é uma telenovela – embora alguns dos seus efeitos pareçam inspirados na respectiva fórmula – e pretende apresentar-se como uma Grande Reportagem, que os dois canais gémeos exploraram até à exaustão, na íntegra ou em excertos. Ora, o que vimos só remotamente poderia inserir-se num género jornalístico, a não ser que o jornalismo se tivesse tornado um género subsidiário do Ministério Público ou instrumento da Acusação num processo ultra-mediatizado, convertendo-se numa telenovela triunfal nas guerras de audiências.

A partir do momento em que o telespectador percebe que tem acesso directo às inconfidências involuntárias de arguidos e testemunhas, montadas de forma apelativa e servidas paralelamente por uma bateria de efeitos especiais (gráficos, maquetas, pacotes de dinheiro a deslizar num tapete rolante, fuminhos a simular as cortinas de fumo dos actos de dissimulação dos acusados, filmagens com drones, figurantes e tutti quanti…), é quase impossível resistir aos apelos ao voyeurismo – numa palavra, à encenação. Porque é de uma encenação que verdadeiramente se trata – de uma encenação sobre a investigação das entidades judiciais e o libelo acusatório, não de uma genuína investigação jornalística independente, com recurso a fontes autónomas, contraditórias e sem ligação entre si. Em contrapartida, estamos perante um exemplo acabado da promiscuidade entre o poder judicial e o jornalismo populista, de sarjeta, embora servido com aparências sofisticadas e imaginativas de mise-en-scène.

Evidentemente, não faltará quem argumente que se trata de um serviço público, necessário para desmascarar os malandrins que agem na sombra e em estreita cumplicidade através das malhas secretas da corrupção entre os poderes político e económico. Que se trata de um exercício de higiene cívica para dissuadir os malfeitores, os megalómanos, os incuráveis narcisistas que são incapazes de resistir aos seus impulsos e paixões primárias. Só que não vale tudo. Se os julgamentos na praça pública substituírem os julgamentos nos tribunais – e isto com a cumplicidade culposa dos magistrados que temem pela solidez das suas investigações e dos seus libelos – estaremos a caminhar na direcção do populismo, não da justiça democrática. E, contrariamente às aparências, esta deriva aproveita aos alegados malfeitores para reclamarem o seu estatuto de vítimas de uma conspiração insidiosa e infamante contra o seu direito de defesa ou a sua honra e dignidade.

Na política, na justiça e no jornalismo não vale tudo – e daí a necessidade salutar de não existirem relações promíscuas entre cada um dos campos. A "judicialização" do jornalismo é nefasta quer para o jornalismo quer para a justiça. O jornalismo não pode confundir-se com um contrabando encenado da justiça porque isso, simplesmente, não é jornalismo.

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