Nas madrugadas da rádio ficam os cromos

Quando o país dorme e a maioria das rádios entra em piloto-automático sobe-se a via do microfone na Voz de Alenquer. É a rádio local mais ouvida da região de Lisboa, onde 80 mil pessoas se ligam todos os dias. Cromos da Madrugada não é só um programa, é uma presença na solidão de quem ouve e uma forma de saciar o vício de quem gosta há muito de fazer rádio.

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Vítor Martins: “Isto é uma dependência. Não fumo, tenho a rádio.” Miguel Manso

Dois minutos para lá da meia-noite — noite cerrada na rua —, ouve-se “bom dia” no éter. Chove e os pingos ecoam na porta estreita da casa que é do jornal e da rádio de Alenquer, vila a pouco mais de 30 quilómetros de Lisboa. Não há ninguém na rua.

A rádio fica lá em cima, numa espécie de sótão adaptado, que se mantém intacto com a passagem dos anos. Não são mais de dez metros quadrados num estúdio que parece tirado do tempo das antigas rádios-pirata. Vítor Martins assume os comandos da emissão que arranca à meia-noite e pára “quando tiver de ser”. De dia é delegado de informação médica hospitalar, nas primeiras horas da madrugada de quinta para sexta-feira torna-se animador de rádio.

“Isto é uma dependência. Não fumo, tenho a rádio.” Vítor Martins tem 53 anos, diz-se “fã da noite” e faz parte da equipa de quatro pessoas que se assumem como “cromos”. A equipa que anima as madrugadas da Rádio Voz de Alenquer fá-lo há já quatro anos. “Cromos somos todos um bocadinho, mas cada um ao seu jeito.”

Cada animador tem um estilo de programa distinto, mas o contacto com os ouvintes é um dos traços comuns, com o telefone a ficar em modo antena aberta. “A noite acentua a solidão” e aqui engane-se quem pense que a solidão se limita ao “interior profundo” do país.

Vítor já foi “profissional” da rádio nos tempos em que trabalhou na Rádio Orbital. Aqui, a diferença a entre um profissional e um amador está tão simplesmente no dinheiro que recebe (ou não) pelos programas que faz. Por isso, Vítor, como tantos outros em emissoras locais, “pagam para fazer rádio”, ou, numa expressão cliché, “para matar o bichinho”. 

A hora é tardia, mas isso acaba por não ser impedimento, até porque “as pessoas que ouvem rádio a esta hora estão mais dispostas a valorizar o que aqui se fala”. Não há pressas. O próximo programa - gravado, diga-se - é só às 5h00. Até lá a noite é de conversas, “e sempre é melhor uma boa conversa do que deixar as pessoas a ouvir música a noite toda”.

Uma tertúlia matinal

Vítor Martins descreve o programa como “uma tertúlia”. O radialista diz que vem ao estúdio “falar com amigos”. Na sexta-feira em que o P2 o acompanhou, a convidada era a cantora Chiara, que ficou sobretudo conhecida por ter passado pela girls band Just Girls. A playlist estava feita: o novo álbum de Chiara, que se ouviu de uma ponta à outra.

De cabelo bem penteado e camisa justa, Vítor vira-se para Chiara e para o produtor Paulo Ferro: “Eu aos meus convidados trato sempre bem, querem um café ou um chá?” “Para já não” — respondem. O lanche viria mais à frente. Já com hora e meia de programa, uma garrafa de vinho, queijo e outros aperitivos vieram à mesa da rádio para acompanhar a noite de conversa. A partir de certa altura, o estúdio fica parecido com uma qualquer sala de estar.

As mensagens para o radialista da madrugada começam também a aparecer: “Boa noite, meu cromo.” São várias as pessoas que tentam interagir com o programa. Agora já não são as cartas, “é mais emails e Facebooks”. Ganhou-se imediatismo, mas não se perdeu a paixão pela rádio. “A melhor coisa são os obrigados dos ouvintes”, confessa Vítor.

No canto do estúdio há uma pequena webcam que os animadores podem ligar para interagir com quem está nas redes sociais. Ao contrário dos outros radialistas da madrugada, Vítor não gosta de falar para as câmaras. “Continuo a gostar da magia da rádio à moda antiga”, justifica.

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Vítor já foi “profissional” da rádio nos tempos em que trabalhou na Rádio Orbital Miguel Manso

A meio da conversa em estúdio ouve-se silêncio no éter — uma “branca” na gíria da rádio — “mais uma branquinha para limpar a antena”, diz na brincadeira Vítor, que se tinha perdido no meio do diálogo fora do ar com os convidados, enquanto se ouvia uma das músicas do novo disco de Chiara.

Um clássico das madrugadas

Quando em 1996 todas as rádios foram obrigadas por lei a emitir durante 24 horas, a Voz de Alenquer decidiu ter em antena um animador da meia-noite às sete horas, sempre em directo, programa que se manteve até 2012, quando no pico da crise em Portugal se fizeram alguns cortes na cooperativa que gere a rádio.

Conta a história da rádio que o locutor das madrugadas chegou a ver o nome inscrito no testamento de uma ouvinte. Algo que se acabou por saber já só depois da morte dessa admiradora.

A Rádio Voz de Alenquer chega a 80 mil pessoas por dia, dados de um estudo da Marktest do ano passado mostram que é a rádio local mais ouvida dos distritos de Lisboa, Santarém e Setúbal. Mas a audiência com a internet vai muito para além dos limites que as ondas de rádio impõem. E com um “boa tarde dos Estados Unidos”, escrito por uma ouvinte no Facebook, se prova que também há emigrantes à escuta.

“É normal” que as pessoas acabem por agradecer pela companhia das noites, diz Vítor. Os próprios ouvintes fazem questão de o dizer quando os telefonemas são postos “no ar”. Ao primeiro “viva” de uma ouvinte em antena, Vítor apressa-se a dizer: “É a professora Alda de Vendas Novas, bom dia!”. Aqui os ouvintes conhecem-se pela voz, como se conhecem as pessoas que nos são próximas.

“Estou aqui a cair de sono confesso, se a conversa não fosse interessante já estava a dormir”, diz a voz rouca da senhora que é conhecida aqui simplesmente por “professora Alda”. Por entre elogios ao animador e à convidada, a conversa entre os dois flui como se fossem amigos de longa data.

“Tão bom conseguir linha aberta”

A chuva acentua-se a meio da madrugada e há notícias de que o emissor deixou de funcionar. Essa falha confirma-se pouco depois. O jornalista João Honrado, que naquela noite assistia em estúdio ao programa, voluntaria-se para ir ver o que se passa. Veste o casaco que a chuva é muita, pede que lhe desejem sorte, e vai à procura do emissor numa serra próxima de Alenquer. Nas rádios locais faz-se um pouco de tudo. Durante o dia, João tinha feito o “fecho” do quinzenário local Nova Verdade. Na manhã seguinte, iria buscar a Lisboa o jornal que nessa mesma noite estava a ser impresso em Braga. Poucas horas depois, tem ainda pela frente uma manhã de distribuição pelos quiosques da região.

Graças a Honrado, a emissão regressa ao éter sem nunca ter falhado online. E volta a tocar o telefone do estúdio. É a Natália “da Sobreda, se não me falha a memória”, diz Vítor. “Tão bom, consegui linha aberta”, ouve-se do outro lado. Natália está num centro de dia sonhou conhecer a rádio e as pessoas que nela trabalham. Conseguiu cumprir esse sonho há uns anos quando veio aos estúdios no alto da vila de Alenquer. É mais uma das ouvintes “atentas” a tudo o que se passa na rádio.

Aqui não há produtor e os ouvintes são lançados para o ar “sem medo”. A única triagem que existe é a da capacidade da linha telefónica.

Para quem está do outro lado, mais do que uma companhia nestas noites, acaba por se ali viver um “sentimento de família”. De tal maneira que existe uma quase obrigação de o ouvinte dizer que está presente do outro lado à escuta e que não deixa sozinho” o locutor apesar da hora tardia, numa espécie de relação de compromisso.

Em estúdio, a noite da conversa acaba quando chega ao fim a última música do disco da Chiara, que ia pautando a conversa. Ouvem-se repetidos agradecimentos, por tão agradável noite”. São quase 5 horas da manhã e o computador da rádio haveria de ficar a tocar canções até “acordar” de novo para mais um dia, quando o programa da manhã arrancar às 07h00. Deitam-se os “cromos” e recomeçam as rotinas.

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