“Portugal continua a ter um offshore

Carlos Pimenta, do observatório de gestão de fraude, não tem dúvidas em inserir a zona franca da Madeira na rede de paraísos fiscais. Em livro, explica como se organizam os offshores e por que se mantêm de pé.

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Carlos Pimenta, da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, é fundador do Observatório de Economia e Gestão de Fraude Nelson Garrido

Tantas vezes a pergunta lhe foi feita nas aulas, em debates e conversas informais sobre economia e globalização que Carlos Pimenta decidiu passá-la para o papel. “Como se justifica que depois de tantas declarações políticas con­tra os offshores eles continuem a existir?”. O tema é lato, a definição de paraíso fiscal mutável, e a resposta, Carlos Pimenta procura ensaiá-la no recém-publicado livro Os Offshores do Nosso Quotidiano, uma obra de 120 páginas onde o autor, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, discorre sobre o que é um paraíso fiscal, “para que serve” e “a quem serve”.

Em entrevista ao PÚBLICO, o investigador do Observatório de Economia e Gestão de Fraude constata que a existência destes centros financeiros não tem sido verdadeiramente posta em causa. “Apesar das proclamações”. Pimenta explora algumas contradições na resposta ao problema, sem excluir Portugal da crítica.

“A União Europeia vem invocando problemas com os offshores e o presidente da Comissão Europeia está de acordo, mas quando foi primeiro-ministro do Luxemburgo não o fez. Sempre que há uma declaração política dessas [em resposta a casos como o LuxLeaks ou os Panama Papers] e a entidade que a faz está ligada a algum offshore, normalmente vem logo dizer que o do seu país é diferente dos outros”. O economista refere-se não só ao caso do Grão Ducado – falando da existência de um Luxemburgo oficial e de um outro sub­terrâneo –, mas di-lo também em relação ao caso português, pela inserção da zona franca da Madeira no mercado financeiro global.

Do que falamos, afinal, quando falamos de um offshore? A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que no livro o investigador descreve como “relativamente complacente”, refere um traço comum – impostos nulos ou baixos num determinado território, a ausência de trocas efectivas de informação com outros países e a falta de transparência legislativa, jurídica ou administrativa. Mas Carlos Pimenta sublinha o facto de uma jurisdição se avaliar não apenas por estas características, salientando que é importante olhar para a sua função na rede global de offshores, paraísos fiscais, judiciais e jurisdições sigilosas. O facto de um território deixar de ser sigiloso não significa, para Pimenta, que deixe de poder ser considerado como tal, porque, justifica, uma coisa é o formalismo e outra o que efectivamente se passa, como quando há uma negociação com entidades estrangeiras à margem da letra da lei para a aplicação de impostos.

O investigador não tem dúvidas em afirmar que “Portugal continua a ter um offshore”. Fala da zona franca da Madeira. Embora considere que o Centro Internacional de Negócios (CINM) tem um papel modesto no contexto internacional, não deixa de colocar o regime fiscal regional naquele leque, como faz a organização do Tax Justice Network.

Em relação aos paraísos fiscais, sublinha, “há muito desconhecimento sobre o que representam” e “há da parte de muitas instituições políticas uma lógica de [apresentar a] concorrência fiscal como vantagem”. Isso, diz, ajuda a explicar porque continuam de pé. “É natural que se façam declarações políticas para enganar quem as ouve”, refere ao PÚBLICO.

Em rede

Se o autor ressalva que o actual regime fiscal do CINM – que permite a instalação de novas empresas até ao final de 2020, beneficiando de um IRC de 5% até 2027 relativamente aos lucros das operações realizadas com entidades não residentes no território por­tuguês ou com outras sociedades da zona franca – não chega para se falar de um offshore, considera que há outras razões que o levam a dizer de forma inequívoca que o é.

No livro, Pimenta enumera alguns dos exemplos contados pelo economista João Pedro Martins na obra Suite 605, na qual este autor refere (em 2011) que dois homens da freguesia de S. Pedro geriam 868 empresas “sem qualquer remuneração pelo desempenho do cargo” ou quando Martins refere a existência de empresas “criadas especificamente para manipular os preços de transferên­cia e funcionarem como ‘porta de entrada’ no mercado europeu, transferindo os custos para os países de maior tributação e deixando os lucros na Madeira” para beneficiarem das vantagens fiscais do centro de negócios.

Do ponto de vista português, há dois aspectos que o preocupam. “Quando se ouvem declarações públicas de que é preciso acabar com os offshores, diz-se ‘Bom, mas isto não é um offshore…’. Tenta-se encontrar as especificidades que fazem com que [determinado regime fiscal] não seja exactamente um offshore, ou considera-se que é mais bem comportado do que os outros.” A Carlos Pimenta preocupa o facto de a Madeira “fazer parte dessa rede” global, porque uma empresa consegue reduções de impostos “a nível mundial em grande escala”. “Se há uma empresa que não tem um único trabalhador, interessa apenas para os registos contabilísticos. Há empresas que se instalam na Madeira e conseguem isenções fiscais brutais que não se justificam”, descreve.

No fio da navalha

A partir dos trabalhos da comissão de inquérito dos Panama Papers, o Parlamento Europeu aprovou em Dezembro um conjunto de recomendações à Comissão Europeia onde considerava que as zonas francas e os portos francos “não podem ser utilizados de forma abusiva no intuito de alcançar efeitos equivalentes aos paraísos fiscais ou para contornar as normas internacionais de transparência tendo em vista o branqueamento de capitais”.

O livro de Carlos Pimenta é prefaciado pela deputada do BE Mariana Mortágua, que ali defende, “a título pessoal”, que Portugal deveria avançar com uma “alteração do estatuto jurídico” do centro de negócios, uma tarefa que considera prioritária no combate à fraude e evasão fiscais.

Não particularizando nenhum caso, mas falando de uma forma global, Carlos Pimenta explica porque entende que os paraísos fiscais “estão no fio da navalha”. Por um lado, diz, “há um determinado tipo de práticas que são legais, mas, por outro, a montante ou a jusante, fazem parte de processos que são condenáveis, nomeadamente ligados ao branqueamento de capitais e à fuga aos impostos”.

Para o investigador, o facto de uma vaga de paraísos ter assumido um maior compromisso de troca de informação com as administrações tributárias de outros países, aderindo à convenção multilateral da OCDE, não significa que deixem de ser paraísos. “Depende do tipo de cooperação: uma coisa é existir uma transparência completa; outra é fazer determinado tipo de acordos fiscais que funcionam mal ou não funcionam”. A triangulação dos fluxos financeiros, frisa, é a grande questão, que o leva a dizer que não se deve centrar o debate num offshore em particular, “mas nesta teia imensa”. É preciso olhar para o nível de intermediações: “Um indivíduo constitui uma empresa nas Ilhas Caimão, faz pagamentos a Singapura, tem um testa-de-ferro noutro paraíso fiscal e é esse que aparece no offshore”.

Em cooperação

A Suíça, mesmo tendo abolido o sigilo bancário, continua a ser o principal destino das transferências para offshores feitas a partir de Portugal (em 2016, seguiram para a praça financeira helvética 3647 milhões de euros, 40% de todas as movimentações feitas a partir de instituições financeiras a operar em Portugal). Para o professor da faculdade de Economia do Porto, a Suíça mantém-se como preferida porque os bancos suíços continuam a ser um polo de gestores de fortunas à escala internacional. “Quando a polícia de um país pede informações à Suíça relativamente a uma determinada conta, eles fornecem efectivamente, mas também têm de informar a entidade da conta investigada. Simultaneamente, há jurisdições especializadas em reagir rapidamente e “espalhar uma determinada conta, como o Liechtenstein”. É o que Pimenta descreve no livro como territórios de “câmara de compensação anónima”, com funções específicas de “irradiar para outros espaços, alterar locais e testas-de-ferro quando há uma investigação sobre uma determinada riqueza”.

Essa cooperação é abordada no livro. Pimenta cita uma parte de um outra obra de que é co-autor com António Maia, Aurora Teixeira e José António Moreira (Percepção da fraude e da corrupção no contexto português), onde se conta na primeira pessoa um episódio vivido por alguém que hoje pertence à Tax Justice Network: “Em 1986, quando comecei a trabalhar no sector financeiro offshore em Jersey, recebi as seguintes instruções: ‘John, quando criar uma estrutura para um cliente, não comece com uma conta bancária na Suíça; esse é o último passo. Primeiro, cria-se um fundo offshore ao abrigo da legislação de Jersey ou noutro lugar qualquer. Ninguém saberá da sua existência a não ser o fundador, os administradores, e os beneficiários que recebem pagamentos daquele. Esse fundo será proprietário de uma empresa offshore registada nas Ilhas Virgens Britânicas, que por sua vez será proprietária de outra empresa offsho­re noutro local como o Luxemburgo. É a empresa no Luxemburgo que irá abrir e controlar a conta bancária na Suíça.’ Esta é a realida­de de como as estruturas offshore são criadas e, em muitos casos, os advogados e contabilistas que criaram essas estruturas encarregar­-se-ão de as realizar cobrindo mais de cinco jurisdições, de modo a tornar a identificação dos verdadeiros proprietários por parte de agências de investigação o mais difícil possível”.

A realidade tem sempre vários vértices. Os números oficiais da administração fiscal portuguesa mostram que em sete anos, de 2010 a 2016, foram transferidos de Portugal para offshores perto de 37.550 milhões de euros, mas, vinca Pimenta, “não haja ilusões de que os números são uma pequena parte dos movimentos efectivamente existentes”.

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