Bem-vindos ao parque de diversões (em construção) do Netflix

Num evento espampanante em Roma, o serviço de streaming veio mostrar as apostas europeias para os próximos meses. Sem ter, na verdade, muito para mostrar

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ERNESTO S. RUSCIO / GETTY IMAGES FOR NETFLIX

“Parque de diversões”: eis o modo como, às tantas, Ted Sarandos, responsável máximo pelos “conteúdos” do serviço de streaming Netflix, descreveu a companhia à centena e meia de jornalistas e parceiros europeus, convidados para dois dias de apresentações e entrevistas numa luxuosa vila com uma vista de cortar a respiração sobre Roma, decorada a preceito com dioramas interactivos de Lost in Space ou Glow e com catering permanente ao longo do dia. Essa interactividade confirmava a definição: o Netflix como museu ou um parque de diversões aberto a toda a gente em todo o mundo. Mas o que Sarandos não disse, por entre as múltiplas notícias, anúncios, painéis e convidados do que o serviço vai estrear nos próximos meses, é que o parque de diversões ainda está em construção, e que nem todas as atracções estão ainda a funcionar.

Esta terceira edição europeia do media day do serviço de streaming, intitulado genericamente See What’s Next, foi o equivalente dos chamados upfronts anuais das cadeias televisivas dos States, apresentando aos anunciantes a grelha da próxima temporada. O sequenciamento pensado ao milímetro das apresentações que tiveram lugar na Villa Miani, a mecânica bem rodada de responsável comercial a vender produto, o relógio virado para o palco para os apresentadores saberem o tempo de que dispunham, traía o modelo do evento. Tudo “à americana”, como americanos foram os nomes a comandarem os painéis – de Erik Barmack, vice-presidente da produção internacional, a Todd Yellin, vice-presidente de produto, passando por Cindy Holland, responsável global dos conteúdos originais, e pelo presidente da firma, Reed Hastings, que deu as boas-vindas aos presentes.

E “à americana” foi também o resultado do dia. Espremido o sumo, das grandes parangonas sobre “as dez novas apostas europeias” que preenchiam press releases e afins saíram apenas pouquíssimas gotas – nenhuma tem ainda data de lançamento prevista. Daquilo que se viu durante o dia de quarta-feira, o que já está acabado ou está em finalização conforma-se à lógica tradicional do género – policial, ficção-científica, espionagem, comédia, adolescente - mesmo que no papel todos os showrunners e criadores tenham dito que a ideia é sempre partir do género para fazer algo diferente do standard.

Há casos em que essa diferenciação existe e se tornou em ponta-de-lança do canal, tanto a nível público como crítico – mas em que o serviço adquiriu algo que já existia. Um é o policial espanhol La Casa de Papel, adquirido à Antena 3 e que se tornou num tal êxito que o Netflix garantiu a exclusividade de uma nova série, que só irá surgir em 2019 e sobre a qual rigorosamente nada se sabe ainda. Outro é a antologia de ficção científica distópica Black Mirror, que começou no Channel 4 e que terá em 2019 uma quinta série de episódios, anunciada por Charlie Brooker e Annabel Jones por vídeo chamada de Londres. 

Sobre as novas apostas, no entanto, na verdade nada se soube. Da Alemanha, apresentaram-se Dogs of Berlin, The Wave, que serializa o filme de 2008 de Dennis Gansel inspirado por factos reais, e uma nova temporada do êxito Dark, que vai começar a ser rodada em Junho. De Itália, uma nova série de episódios do êxito mafioso Suburra e um drama adolescente, Baby, a par de uma primeira longa-metragem de produção local, Rimetti a noi nostri debiti. E de Espanha, da qual Las Chicas del Cable foi também uma aposta ganha, virá Élite, drama adolescente ambientado num colégio privado, e a comédia Paquita Salas. Da produção francesa (um dos primeiros países onde a Netflix arrancou com produção local com o tiro no pé Marseille), nada se viu da meia-dúzia de projectos a caminho; e aguçou-se a curiosidade para o primeiro original polaco, 1983, que fala de um universo alternativo onde a Cortina de Ferro nunca acabou e as revoltas sindicais não tiveram impacto, e para uma fantasia inglesa, The Innocents, sobre uma jovem que pode mudar de forma.

Tudo, no papel, bastante formatado, à imagem daquele que foi o lançamento forte do evento: o primeiro original dinamarquês do serviço, The Rain, drama adolescente pós-apocalíptico sobre um grupo de jovens numa Escandinávia deserta após uma epidemia transportada pela chuva. The Rain, que estreia já no início de Maio, teve honras de exibição à imprensa dos dois primeiros episódios, acompanhada pela presença dos seus criadores e actores para entrevistas – com o cuidado de produção a que os escandinavos nos habituaram e a presença como showrunner de Jannick Tai Mosholt (um dos argumentistas de A Fraude Borgena tentarem fazer a diferença num género (a ficção apocalípica para “jovens adultos”) que parece estar já em saturação.

Que The Rain fosse a única série “pronta a mostrar” num evento que era suposto definir uma aposta genuína nos conteúdos europeus é problemático, sobretudo quando “jóias da coroa” do serviço como The Crown (cuja próxima série terá Olivia Colman e Tobias Menzies a darem corpo a Isabel II e ao príncipe Filipe) nem sequer são referidas. Mas não é surpreendente, perante as contradições inerentes ao projecto Netflix: dá liberdade absoluta aos seus criadores mas acaba por ver tudo como “conteúdo”, continua a correr riscos mas assumiu um papel de gigante mediático que já abafa a dimensão de concorrência disruptora. Num dos painéis mais interessantes do dia, Cindy Holland, responsável máxima da produção original, explicou rapidamente a lógica por trás da “luz verde” a um projecto: adequar o investimento numa série ao potencial de audiência de acordo com uma série de modelos financeiros. Foi por isso, explicou a executiva em resposta a um jornalista, que Sense8, a muito badalada série das irmãs-ex-irmãos Wachowski, foi cancelada: nunca conseguiu encontrar um público global que justificasse o investimento. É a lógica do algoritmo a funcionar. Se o algoritmo funciona da mesma maneira com a produção europeia que aí vem (e que, publicamente e para já, não inclui nada made in Portugal), vamos ver.

O Público viajou a convite do Netflix 

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