Um país com cadáveres às costas

Há 44 anos, havia vidas individuais que poderiam ser livremente vividas. Havia um país a construir. Havia uma comunidade a dignificar.

Na quarta-feira, o 25 de Abril faz 44 anos. Chamo-lhe assim, apenas assim, porque dizer a data chega, contém, para mim, tudo o que significou de libertação e sonho e as múltiplas revoluções nascidas daquele “dia inicial inteiro e limpo”, como lhe chamou Sophia. Em 1974, eu era uma adolescente e tive o privilégio de me tornar adulta num ambiente em que o céu não era limite, em que a liberdade era sentida como a conquista essencial e em que era permitido acreditar que em Portugal tudo iria ser possível e justo. Havia vidas individuais que poderiam ser livremente vividas. Havia um país a construir. Havia uma comunidade a dignificar. E, repito, o céu não era limite.

Passados 44 anos, há poucos dias li o último romance de Miguel Real, romance que ficará na minha lista de obras obrigatórias. Ler Cadáveres às Costas, em vésperas do 25 de Abril, é ser confrontada com um dos mais lúcidos (e satíricos) retratos do Portugal de hoje. Está lá tudo. A esperança da liberdade como supremo direito humano. A esperança de um país com futuro. A esperança de um futuro colectivo, enquanto comunidade de pessoas que se sentem como tal.

Mas também o país que ao fim de 44 anos continua a tentar controlar o défice e a procurar diminuir uma dívida pública astronómica. O país em que a condução política ficou aquém de cumprir o seu papel. Um país que tem um ex-primeiro-ministro e representantes das elites empresariais indiciados ou acusados por fraude fiscal, branqueamento de capitais, corrupção e tráfico de influências, numa novela que daqui a dez anos provavelmente ainda durará. Basta lembrar que no processo Face Oculta as condenações estão há mais de três anos à espera de transitar em julgado.

É certo que os três DD de Abril – descolonização, democratização desenvolvimento – foram cumpridos. Não há comparação remota que possa ser feita entre o país em que nasci, o país em que cresci e o país em que vivo. Contudo, olhar para o país hoje, com a sua multiplicidade de realidades que coexistem, é, em grande parte, ler Cadáveres às Costas. Lá está desenhado com perfeição e pormenor o retrato cru e triste de Portugal, que pode resumir-se na ideia da Cruz de Pedra no alto do Parque Eduardo VII, em Lisboa, como se dela estivéssemos todos suspensos através dos vários tipos sociais representados no romance.

A especulação imobiliária e todas as especulações que pululam. Os políticos arrivistas e carreiristas, manipuladores das estruturas do Estado, que tudo e todos usam para a satisfação dos seus interesses pessoais e a ascensão ao poder. As dificuldades, os obstáculos e a falta de meios com que se confronta a Justiça, quando procura investigar negócios ilícitos, tráfico de influências ou corrupção. A sociedade sem dimensão de exigência ética e corrupta que se instalou, onde negócios escusos e ilegais são praticados pelas elites sociais e até as novas relações de interesses com Angola, a versão moderna de um tipo de colonialismo.

A herança da ditadura e da Guerra Colonial ainda dormente numa memória colectiva que não se assume. A elite social exibicionista e arrogante que despreza a mobilidade social possibilitada pela democratização. O jornalismo deslumbrado e cego pela presunção balofa de protagonismo. Os restos de um Portugal profundo e arcaico e o atavismo de uma grandeza sempre a vir e sempre adiada.

A desilusão dos que acreditaram em revoluções que se desfizeram na areia. O peso e atitude de parte de uma hierarquia eclesiástica católica. A religiosidade beata, a religiosidade quase animista e a crendice. Até os bonés dos clubes de futebol, as bifanas, as febras, os “sumóis” e as “minis” lá estão. É um retrato cru e triste, mas magnífico do país que construímos, negando muitas das expectativas de há quatro décadas e de hoje.

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