Salvato Trigo e a pequena ajuda do Google

O reitor Salvato Trigo recorreu para a Relação: não quer que me seja enviada a cópia dos seus argumentos a pedir para ser julgado à porta fechada.

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Não estudei Direito, mas arrisco-me a dizer duas coisas sobre as 11 páginas de alegações que o advogado do reitor Salvato Trigo apresentou ao Tribunal da Relação do Porto para manter dois documentos secretos.

A primeira é que não se aproveita um único argumento. A segunda é que José A. Ferreira Pinto, advogado do reitor, ficará na memória dos juízes desembargadores da Relação do Porto, que vão julgar o recurso, como alguém que não sabe citar o que lê. O Google tem destas coisas. Já quanto a Fátima Galante, autora de um acórdão citado por Salvato Trigo, é razoável acreditar que a juíza casada com Rui Rangel tem hoje coisas mais importantes para fazer do que pensar nisto — por mais descabida que seja a invocação feita.

O caso é simples. Salvato Trigo, professor e fundador da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, está há seis meses a ser julgado num tribunal pelo crime de desvio de três milhões de euros da universidade. Até aqui tudo seria normal, não fosse o caso de o juiz José Guilhermino Freitas ter decidido fazer o julgamento à porta fechada, tal como pedido pelo réu.

À excepção de crimes sexuais, casos com menores e outras raridades, não há memória de decisão igual nos 44 anos da democracia portuguesa. Em Fevereiro, pedi ao tribunal uma cópia do requerimento de Salvato Trigo a defender um julgamento secreto e uma cópia do despacho em que o juiz explica por que concordou. Veio a primeira recusa e contestei. A seguir, o juiz decidiu que, afinal, por ser jornalista, eu tinha “legitimidade e interesse legítimo” e deveria receber as cópias. Isso, claro, apenas no fim do julgamento e depois de saber se o reitor recorreria.

Como previsto, o reitor recorreu. Se há leitura estimulante é a de um texto jurídico que segue, com criatividade e rigor, o manual que Cícero nos deixou sobre a arte da persuasão (está tudo em How to Win an Argument – An Ancient Guide to the Art of Persuasion, com selecção, edição e tradução de James M. May, que a Princeton reeditou em 2016). Para minha tristeza, não é o caso.

José A. Ferreira Pinto, o advogado do reitor, tenta desviar a atenção dos juízes desembargadores daquilo que é a essência do caso (fazer um julgamento à porta fechada); argumenta contra um pedido que eu não fiz (quero conhecer os argumentos da “exclusão da publicidade” e não ter acesso à totalidade do processo); cita um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (de Galante) que nada tem a ver com este caso (é sobre a disputa da herança de Horácio Roque); reduz todo o jornalismo a “mera intenção sensacionalista” e “mera satisfação de curiosidade” (passando por cima da Constituição e do que é consensualmente reconhecido como um alicerce da democracia); insiste que um julgamento aberto seria “nefasto” para os alunos da Universidade Fernando Pessoa (como se a ideia de esconder não fosse muito mais tóxica); espanta-se com o facto de o juiz ter originalmente decidido fechar as portas e agora ter concordado abrir esta minúscula janela (ignorando que o artigo 87.º do Código de Processo Penal antevê justamente isso); repete “jamais”, “jamais”, “jamais” como se não existisse jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a mostrar que não é de todo assim; passa por cima de 99% da Lei de Imprensa e argumenta que, ao permitir acesso a dois documentos, o juiz violou “flagrantemente a Constituição”; trata o princípio da “reserva da vida privada” como se estivéssemos a discutir o alinhamento da revista Hola!, e, last but not least, cita um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, João Pires da Rosa, sem dizer que, na verdade, a passagem em questão foi dita noutro contexto.

Vale a pena ler o texto de Pires da Rosa (aposto que leu Cícero). São 25 mil caracteres de raciocínio lógico que aplicam, diligentemente, as regras do mestre romano: o juiz prova que as ideias são verdadeiras (logos), conquista a assistência (ethos) e leva os leitores a sentirem a emoção que o tema exige (pathos). Com um senão: essa citação de Pires da Rosa foi retirada de uma intervenção sobre “o direito à integridade pessoal versus a liberdade de empresa”. Está na Internet. É muito útil para quem procura argumentos contra vizinhos barulhentos ou padarias e restaurantes que provocam maus cheiros e ruído. Não para discutir acesso a informação e transparência da justiça.

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