Exortação à “geringonça”

Esta solução inédita de governação, e o povo que ela serve, mereciam mais fôlego e ambição nesta fase final da legislatura.

Se perguntarmos a um estudante de História por que ficou conhecido o governo da Frente Popular que governou de 1936 a 1938 em França, há uma resposta pronta: “as férias pagas”. Efetivamente, foi neste governo liderado pelo socialista Léon Blum com o apoio do Partido Comunista Francês e do Partido Radical de Esquerda (ao contrário do que o nome sugere, um partido centrista) e até com o apoio extra-parlamentar da confederação sindical CGT, originalmente de tradição anarquista, que os trabalhadores franceses ganharam pela primeira vez o direito a usufruírem de férias sem deixarem de receber salário. Nunca mais foi esquecida essa conquista.

Ora, a Frente Popular não foi só histórica por causa das férias pagas (e a redução do horário de trabalho, e a consagração da contratação coletiva, e várias outras conquistas sociais). A Frente Popular teria ficado na história mesmo que não tivesse feito nada disso, simplesmente pela razão de que nunca esses partidos políticos e movimentos sociais tinham apoiado o mesmo governo. Também seria sempre considerado um governo histórico por ter um homem de uma minoria (Léon Blum era judeu) a liderá-lo. Mas, embora essas outras razões sejam também mencionadas, a verdade é que a grande razão por que a Frente Popular é lembrada é por essa conquista histórica do direito ao lazer pelos trabalhadores.

Vem isto a propósito da maioria parlamentar de esquerda que apoia o Governo atual em Portugal, numa situação conhecida por “geringonça”.

A importância histórica da “geringonça” está estabelecida. Ao contar pela primeira vez com o apoio de uma convergência de esquerda, a atual maioria de governo foi um passo crucial na modernização do nosso sistema político. No momento e no contexto em que assumiu o poder, ela veio ainda a tempo de assumir uma missão de preservação do Estado Social e de reversão de algumas das medidas de austeridade mais danosas dos anos anteriores. Há categorias da população que no futuro virão a situar no Governo da “geringonça” o momento em que os seus direitos foram expandidos (esperemos que venha a ser também o caso, já na próxima semana, das crianças nascidas em Portugal de pais estrangeiros). A importância da “geringonça” é inegável, finalmente, fora de fronteiras: não há debate sobre a desgraçada situação da esquerda europeia que não mencione Portugal como uma exceção positiva. Para quem lutou por esta solução (alguns de nós, quando isso significava ser-se atacado pela nossa família política) são razões para celebrar.

E são sobretudo razões para relembrar agora, num momento em que a maioria de esquerda parece estar concentrada em discussões de décimas de orçamento (que não devemos desvalorizar: por detrás dessas décimas estão pessoas) e em que o Governo assina pactos com o maior partido da oposição de direita sobre descentralização e fundos europeus.

É num momento como este que vale a pena olhar para o que resta da legislatura e perguntar aos parceiros desta solução como é que preferem usar esse tempo: em busca do melhor posicionamento tático pré-eleitoral ou à procura do legado a deixar aos portugueses, que transcenda as reversões e a interrupção do programa privatizador da direita? Claro que isso em si já não é pouco. Mas onde é que está a grande conquista comparável aos exemplos históricos que referi atrás — no alargamento do acesso à educação pré-escolar, por exemplo, ou numa renovação a sério do ensino superior, ou numa reforma que acabe com a lentidão na justiça, ou num “plano Marshall” para o interior? Ou um último exemplo: o PS assinou com o PSD um documento vago e tímido sobre descentralização. Mas todos os partidos da esquerda são pela regionalização; por que não fizeram ao menos esse debate na sociedade portuguesa?

A resposta a essa pergunta passa pelo seguinte diagnóstico: ao contrário do exemplo da Frente Popular com que comecei este texto, os partidos da “geringonça” optaram sempre por se proteger restringindo a política a negociações de gabinete. Não houve mobilização da sociedade civil nem procura de diálogo com as bases sociais de apoio da esquerda (para lá de alguns sindicatos de entre os mais institucionalizados). Essa foi uma escolha tática que ajuda a explicar o taticismo dos últimos tempos. Só que esta solução inédita de governação, e o povo que ela serve, mereciam mais fôlego e ambição nesta fase final da legislatura.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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