O fim do Arsènal

Treinador francês deixa os londrinos no final da época depois de 22 anos. Os primeiros tempos foram de glória, os segundos nem por isso, mas Wenger deixou um legado que não foi exclusivo dos “gunners”.

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O adeus de Arsène Wenger ao Arsenal Darren Staples/Reuters
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Wenger será para sempre um símbolo do Arsenal DANIEL DAL ZENNARO
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José Mourinho e Arsène Wenger, uma rivalidade que foi sempre muito intensa FACUNDO ARRIZABALAGA/Reuters
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Os adeptos do Arsenal começaram a perder a paciência com os desaires da equipa nas últimas épocas TIM KEETON/Reuters
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Wenger na apresentação de Thierry Henry como jogador do Arsenal DYLAN MARTINEZ/Reuters
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Wenger com dois dos troféus que ganhou para o Arsenal Reuters

Não é difícil confundir Arsenal com Arsène. É quase a mesma palavra, duas letras diferentes e um acento. Durante 22 anos, o Arsenal foi de Arsène Wenger, mas vai deixar de ser no final da época. O treinador francês de 68 anos anunciou nesta sexta-feira que vai deixar o clube londrino, depois de mais de duas décadas de muitos altos no início e muitos baixos no final. Deixa títulos e um legado difícil de igualar, no Arsenal e no futebol inglês – não são muitos os treinadores do futebol mundial que se podem gabar de terem “construído” um estádio. No final da época o Arsènal, assim mesmo, com acento e para ser lido com sotaque francês, “c’est fini".

Wenger deixa o Emirates como o segundo treinador que mais tempo ficou ao comando de uma equipa em toda a história da Premier League e com três títulos de campeão, mais sete Taças de Inglaterra (um recorde). Foram 22 anos, que começaram em 1996 e que vão acabar no último jogo da presente época, que pode terminar com um título, caso os “gunners” se consigam apurar para a final da Liga Europa. Esse será o último grande desafio do Arsenal de Arsène, que dificilmente ficará esta temporada acima do sexto lugar da Premier League: fechar os anos londrinos com glória europeia, algo que sempre lhe escapou, para além de deixar ao seu herdeiro (que ainda não está escolhido, mas Wenger terá, por certo uma palavra a dizer) um Arsenal qualificado para a Liga dos Campeões.

A eventual conquista da Liga Europa será a cereja no topo de um legado mais amplo do treinador francês ao Arsenal, ele que abriu horizontes num tempo em que o futebol inglês ainda estava muito fechado sobre si mesmo. Quando chegou a Inglaterra, em 1996, Wenger era apenas um de dois treinadores nascidos fora das ilhas britânicas (era ele no Arsenal e Ruud Gullit no Chelsea). Em 2017-18 são 11 em 20 os treinadores não britânicos. E, quando chegou, eram mais as desconfianças que as certezas. Já não era propriamente um novato quando aterrou em Londres proveniente de Nagoya, já tinha 12 anos como técnico, um título de campeão francês pelo Mónaco. Mas por que raio é que o Arsenal foi buscar um francês ao Japão quando podia ter contratado Terry Venables, seleccionador inglês, ou Johan Cruyff, o génio holandês?

Foi essa pergunta que fez a si próprio Nick Hornby, escritor britânico adepto fanático do Arsenal que despejara essa paixão num livro chamado “Fever Pitch”. “Lembro-me de pensar que vai ser o Wenger porque eu nunca ouvi falar dele. É certinho que o Arsenal vai sempre contratar aquele treinador aborrecido de que ninguém nunca ouviu falar”, dizia o escritor em 2003. Mas não iria durar muito para Hornby e todos os outros “gunners”, mais habituados a desilusões e equipas cinzentas, verem em Highbury alguns dos melhores jogadores do mundo. E isso só têm de agradecer a Arsène.

Basicamente, Wenger foi um homem à frente do seu tempo que, depois, se atrasou. Construiu grandes equipas apostando em jogadores relativamente desconhecidos e baratos, mas já não acompanhou a mudança dos tempos em que o futebol se tornou num monstro comercial que movimenta centenas de milhões. E quando a Premier League se transformou num campeonato de oligarcas, petrolibras e transmissões televisivas milionárias, Arsène Wenger demorou a adaptar-se e o Arsenal foi perdendo lugares na hierarquia para clubes como o Chelsea ou o Manchester City. Também começaram a gastar muito, mas já sem a capacidade de atrair as “estrelas” milionárias de primeira grandeza. Wenger bem tentou contratar Mbappé, mas perdeu-o para o PSG. Também não conseguiu impedir a saída de Alexis Sanchéz para o Manchester United. Ambos pagavam mais e o Arsenal, nestes últimos tempos, tinha cristalizado na mediocridade.

Wenger, o professor

Wenger já era um homem com conhecimento enciclopédico do futebol quando chegou a Highbury, em 1996. Podia não ter sido um jogador de grandes méritos, mas já era um treinador experimentado, com um título em França com o Mónaco e com uma curta passagem pelos japoneses do Nagoya Grampus Eight. Uma das primeiras medidas foi mudar a dieta dos jogadores, e “obrigá-los” a comer mais massas, peixe cozido, frango e legumes crus, e menos carnes vermelhas, ovos estrelados, “fish & chips” e beber menos cerveja.

Isto era especialmente verdade em relação à cerveja para o central Tony Adams, o emblemático capitão dos “gunners” que, pouco tempo antes da chegada de Wenger, tinha admitido publicamente que era alcoólico. O treinador francês nunca deixou cair Adams e ele retribuiu a confiança liderando os “gunners” nos títulos de 1998 e 2001. Graças a Wenger, Adams conseguiu esticar a sua carreira até aos 36 anos, algo que dificilmente teria conseguido se o francês não tivesse entrado na sua vida.

Adams estava no centro de um núcleo de veteranos a quem Wenger prolongou a carreira, como David Seaman ou Martin Keown. A eles, Wenger iria acrescentar juventude inquieta, desconhecida e barata, o que seria a sua imagem de marca durante os anos de glória. Quem era Patrick Vieira em 1996? Um jovem médio francês de 19 anos que andava pelas reservas do AC Milan e que iria custar ao Arsenal a bagatela de 3,5 milhões de libras.

“Nós não contratamos estrelas, fazemos estrelas”, era a filosofia de Wenger resumida numa frase. E Vieira, que viria a ser um dos grandes médios do futebol mundial na década seguinte, foi só a primeira. Anelka, Henry, Fàbregas, Ljungberg, Van Persie, são alguns entre muitos. E mesmo o português Luís Boa Morte, sem ter tido muita sorte no Arsenal, teve uma óptima carreira internacional graças à aposta de Wenger quando ainda andava pela formação do Sporting e sem nunca ter jogado na I Divisão portuguesa.

Foi com esta política que Wenger viveu os seus melhores tempos em Londres, a conquistando o título de campeão em 1998, 2002 e 2004, conseguindo, de caminho, o equilíbrio financeiro necessário para o Arsenal construir o seu novo estádio. E Wenger também conseguiu boas carreiras europeias (quase sempre na Liga dos Campeões), a melhor de todas em 2005-06, em que chegou à final da Champions e quase surpreendeu o Barcelona de Rijkaard – a jogar com menos um desde os 18’, por expulsão do guarda-redes Lehman, os “gunners” conseguiram estar a ganhar, com um golo de Campbell aos 37’, mas cederam perto do final à pressão catalã, que deu a volta com golos de Eto’o e Belleti.

A melhor criação de Wenger foi também a última equipa do Arsenal campeã de Inglaterra. Em pleno domínio do Manchester United e antes de José Mourinho entrar com estrondo no futebol inglês, o Arsenal foi campeão sem sofrer qualquer derrota, algo que já não se via em Inglaterra desde o século XIX – o Preston North End tinha conseguido o mesmo em 1889, no primeiro campeonato inglês. A equipa ficou para a história do futebol como “Os Invencíveis” e juntou jogadores como Dennis Bergkamp, Thierry Henry, Patrick Vieira, Robert Pires, Freddie Ljungberg, Sol Campbell, Jens Lehman, Ashley Cole ou Kolo Touré.

O treinador francês foi conseguindo manter o Arsenal no topo, mas sofreu o destino de quem tem de ser austero no meio de gente com bolsos fundos. Graças a esta estratégia, o Arsenal fez grandes negócios e conseguiu construir o seu estádio (o Emirates seria inaugurado em 2007), mas a grande equipa dos invencíveis foi sendo depenada pela concorrência. A capacidade de responder foi sendo cada vez menor até que Wenger também entrou no jogo das contratações milionárias. E perdeu. Giroud nunca foi um novo Henry, Xhaka nunca foi um novo Vieira, só para citar dois exemplos.

Foram 14 anos em que os cartazes “Wenger knows” (“Wenger sabe”) deram lugar à hashtag #WengerOut. Wenger foi o “querido inimigo” de Alex Ferguson (o único à sua frente na lista de longevidade de treinadores em Inglaterra) e de José Mourinho (que lhe chamou “voyeur” num contexto pouco simpático), mas na despedida anunciada do Arsenal não lhe pouparam elogios, de quem trabalhou com ele e contra ele, mesmo de quem era do Arsenal e já não aguentava uma equipa sem andamento para recuperar o título.

Foram as 14 temporadas sem ganhar a Premier Legue que, em última análise, conduziram à saída voluntária de Wenger, ele que ainda tinha mais um ano de contrato. “Estou contente com a saída de Wenger”, desabafava Piers Morgan, o jornalista que há não muito tempo ofereceu uma camisola do Arsenal a Donald Trump durante um entrevista. “Mas também estou aliviado por lhe poder finalmente agradecer pelo futebol deslumbrante que nos ofereceu”, acrescentava Morgan num artigo escrito no Daily Mail. Wenger já tinha previsto isto numa frase de 1998, pouco antes de se tornar no primeiro treinador estrangeiro a ganhar a Premier League: “Quando comes caviar todos os dias, é difícil voltar a comer salsichas.”

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