Síria: a guerra toda num apartamento

Começou em 2011 e ninguém sabe quando vai acabar. É a tragédia síria em que se pode ficar debaixo de uma bomba sem sair da cama ou sobreviver meses a fio sem abandonar um bairro cercado ou semanas sem sair de casa. Na Síria é a Síria encurralada que não se deixa morrer.

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Entre a primeira vez que olhamos por aquela janela e a última vão passar 24 horas. É só um dia mas é um dia em Damasco. Acontece tanta coisa em tão pouco tempo que pode parecer exagero

Começamos à janela e é à janela que terminaremos. Estamos dentro de um apartamento, no segundo andar de um prédio. Era e é a casa de uma família, adaptada agora para acolher os novos inquilinos: os vizinhos de cima, um casal jovem e o seu bebé, cuja casa foi atingida e ficou meia destruída; o namorado de uma das adolescentes que ali vive (foi visitá-la, nunca mais pôde sair).

Para que todos sobrevivam, esta casa tem de continuar a ser isso mesmo: uma casa onde todos se levantam de manhã, se vestem, fazem as tarefas de sempre e as novas, como ir buscar água, cumprem os horários das refeições – mesmo que a comida seja a mesma durante dias a fios (neste caso é bulgur, uma mistura de grãos do trigo). Mesmo que ninguém vá trabalhar nem haja escolas a funcionar, mesmo que ninguém possa sequer sair dali.

Oum Yazam, a mãe, sente que só ela pode garantir que que todos cheguem vivos (e sãos) ao fim de cada dia e fará tudo para o conseguir. Obrigar o namorado da filha a dobrar a roupa com que dorme num dos sofás da sala. Obrigar uma família inteira a permanecer em silêncio atrás de uma porta onde um homem viola Halima, a jovem vizinha.

Entre a primeira vez que olhamos por aquela janela e a última vão passar 24 horas. É só um dia mas é um dia em Damasco. Acontece tanta coisa em tão pouco tempo que pode parecer exagero. Mas não é. “O filme conta exactamente o que eu vivi”, disse uma mulher na estreia do filme Na Síria (Insyriated) em Madrid, há duas semanas. Há sempre sírios na audiência, diz-nos o realizador, o belga Philippe Van Leeuw, numa conversa por Skype. Essa é a melhor parte. “Os sírios sentem-se agradecidos e eu percebo que os consegui respeitar”.

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Philippe van Leeuw relata um dia na vida de uma família encurralada no seu apartamento de Damasco DR

A síria de Madrid levantou-se para falar assim que os créditos acabaram porque se viu representada e é raro isso acontecer com os sírios. Porque é raro um filme ser tão fiel aos próprios sírios, aos que não combatem e apenas tentam sobreviver, a todos os que passara anos barricados em casas ou bairros, cercados por atiradores furtivos e sujeitos a bombardeamentos diários. A síria de Madrid podia chamar-se Oum Yazam (Mãe de Yazam). Oum Yazam é uma entre tantas mulheres que a revolução e a guerra deixaram viúvas ou apenas sozinhas, a tomar conta de tudo, enquanto os homens andam lá fora a resistir, a defender o bairro, a resolver problemas do que resta de cada comunidade.

Há mais recompensas, como “as pessoas que dizem ter finalmente percebido por que é que tantos sírios tentam chegar à Europa”. Por isso, foi tão importante para Van Leeuw que a estreia tenha acontecido na Berlinale de 2017 – em 2015, quando centenas de milhares chegavam de barco vindos da Turquia e encontravam cada vez mais fronteiras fechadas, foi a Alemanha de Angela Merkel a única a dizer “venham”. E foram, perto de 800 mil.

Uma amiga síria de Van Leeuw contou-lhe um dia lhe que o pai acabara de passar três semanas sem poder sair de casa, sozinho. “A minha amiga está bem, em segurança, já vivia na Europa há 15 anos, mas fiquei muito impressionado com esse episódio”. E o belga, que seguia as notícias da tragédia síria “meio dormente e com uma sensação de impotência”, percebeu de imediato que já tinha na cabeça a história que queria contar sobre esta guerra sem fim.

“Quis que fosse uma família em vez de uma só pessoa. E uma família comum, não especialmente conservadora, nem rica nem miserável”, descreve. As três mulheres adultas, Oum Yazam (Hiam Abbas), Halima (Diamand Bou Abboud) e Delhani, a empregada da casa (Juliette Navis), são actrizes. Todos os outros – o avô, as duas filhas e o filho pequeno Yazam, Samir (marido de Halima) e os homens que aparecem, os que vêm pilhar e os que vêm ajudar –são refugiados sírios a viver no Líbano, onde o filme foi feito.

O apartamento podia ser num qualquer bairro residencial de Damasco, mesmo que quem não saiba nada sobre a Síria antes de 2011 não imaginasse assim uma casa ou uma família síria. “Eu também tinha livros na minha casa”, disse a síria de Madrid. Sim, os sírios tinham livros em casa, estantes cheias de livros como neste apartamento. E não, nem todas as sírias usavam lenço a cobrir o cabelo, como nenhuma destas mulheres usa.

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As adolescentes querem arranjar-se, uma decidiu experimentar depilar-se. O miúdo mais pequeno brinca a assustar o avô. Os miúdos adaptam-se a tudo, ainda que às vezes perguntem sobre a morte, como Yazam. “Mãe, a Delhani vai morrer? E tu?”. “Eles são mais resistentes. Têm mais futuro do que presente e passado, deve ser por isso”, diz Van Leeuw.

São só 24 horas, mas na Síria, dentro de um apartamento, pode mesmo acontecer de tudo num dia. E às vezes acontece. Uma mulher pode acordar e descobrir que o vizinho a quem deu abrigo acaba de ser morto por um sniper no parque de estacionamento que se vê da janela – e antes de se deitar, perceber que o vizinho afinal sobreviveu e é o seu próprio marido que pode estar em risco. Entretanto, a mesma mulher afugentou dois homens que vinham pilhar, até que eles regressam e violam Halima sem que ela o possa evitar.

Aconteça o que acontecer, a vida não pode parar. Oum Yazam sabe disso. “Vão tratar da água”, “Agora vamos limpar o pó e depois preparamos o almoço”.

Tudo isto sem sair de casa. “Se eles não podem sair, eu também não posso”, diz o realizador. A excepção é o momento em que três personagens saem para resgatar Samir, quando descobrem que está vivo.

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Nos últimos anos, isto aconteceu vezes sem conta a demasiados sírios. Ficarem sitiados na sua própria casa, cada vez com menos comida e água, às vezes abrigando mais pessoas do que os membros da família. A olharem os seus mortos da janela sem os poderem recolher.

Como é que eles não sufocam entre quartos e corredores? Como é que continuam a encontrar formas de passar o tempo? Como é que se habituam às bombas e aos tiros? “O bombardeamento foi tão perto. E ele nem chorou. Será que está bem?”, pergunta Halima a Karim (o namorado de Yara que Halima, sem saber do marido há horas, acabará por beijar) a olhar para o seu bebé.

Falta o pai de família, como tantas vezes. “Onde está o Monzer?”, pergunta Oum Yazam aos amigos do marido, quando estes chegam de maca para levar Samir. “Não sei, disse para não esperarmos por ele. Não te ligou?”, responde-lhe Ghassam. “Tu não podes continuar aqui, já não há mais ninguém no prédio”, diz-lhe. “Eu não vou a lado nenhum sem o Monzer”.

Agora mesmo, há famílias assim, fechadas dentro de casa, com medo dos bombardeamentos quase permanentes, dos jihadistas ou dos mercenários, dos que aproveitam a miséria dos outros. E num só dias essas pessoas podem ter de tomar decisões de vida ou de morte. Decisões que podem salvá-las à custa de outros, ou desgraçá-los em nome do grupo. Sem julgamentos, sem moralidades. “Desculpa, desculpa. Estava com tanto medo. Pensei que mais valia que fosses tu”, dirá depois a Halima Aliya, uma das miúdas, sem conseguir parar de chorar. “Não faz mal, vai ficar tudo bem”.

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