Os “no entanto” de Mário Centeno

No Programa de Estabilidade, Centeno chama a atenção para problemas como a fragmentação do mercado de trabalho, o desemprego jovem e o de longa duração

O Programa de Estabilidade para 2018-2022 apresentado pelo ministro das Finanças, Mário Centeno, espelha a confiança do Governo na economia do país, com crescimento do PIB, investimento e procura, e reduções no défice, dívida e desemprego.

No entanto, e para melhor justificar a consolidação das contas públicas, Centeno realça isso mesmo: os “no entanto”. Estão no meio do último parágrafo de uma caixa de texto do Programa de Estabilidade (PE) sobre “As alterações estruturais da economia portuguesa” que ocorreram nos últimos anos. “Portugal”, escreve-se, “virou a página” e “emergiu com renovado fulgor”. “No entanto”, diz, “permanecem desafios importantes”. Os dois primeiros: elevados stocks de dívida pública e privada. Os primeiros podem ainda vir a ser um problema no futuro, no caso de choques externos. Os segundos já são um problema, em ligação com os bancos e dificultando o investimento e novos empregos.

A menção não vem logo de seguida, mas os “no entanto” de Mário Centeno não ficariam completos sem acrescentar que a despesa pública “não poderá desviar-se de um caminho de rigor e prudência” – o que sustenta a ideia de descer o défice para 0,7% - e que “o sector financeiro tem ainda passos a dar a caminho de maior solidez e sustentabilidade”. Uma forma simpática de chamar atenção para problemas como o do crédito malparado (existente e potencial), e para processos de recuperação como o do Novo Banco.

Só este ano, diz o PE, estima-se que o Fundo de Resolução (ligado ao apoio ao Novo Banco) provoque um impacto negativo de 792 milhões de euros nas contas públicas (dos quais 450 milhões são um novo empréstimo do Estado a este fundo) a que se somam outros 145 milhões para os lesados do BES. Conta total: 935 milhões, quatro anos depois do colapso do BES.

Centeno chama a atenção para três outros problemas: a fragmentação do mercado de trabalho, em que contratos sem termo convivem lado a lado com precários, o desemprego jovem e o de longa duração, “que ainda não chegaram aos níveis do pré-crise”. Quando mais tempo se está afastado do mercado de trabalho, mais dificilmente se consegue entrar. As baixas qualificações e falta de experiência ou idade tida como mais avançada do que o pretendido (acima dos 45, mais ou menos, mas sempre longe da idade da reforma) são sérios obstáculos, numa sociedade cada vez mais automatizada e concentrada geograficamente em duas ou três regiões.

O ministro não prioriza os seus “no entanto”, e não se alarga muito no tema, mas estes são certamente dos mais problemáticos no país, a par da baixa natalidade (incluindo aqui a infertilidade) e do abandono escolar precoce. Se há áreas onde se exige o chamado “pacto de regime” – com vista a uma estratégia objectiva sem mudanças constantes - é certamente nestas, principalmente num país de parcos recursos como o nosso.

O investimento é também um factor a ter em conta, porque embora a crescer ainda está abaixo dos níveis antes da crise. Outro é o do imobiliário, a aquecer graças a fenómenos como o turismo e o investimento estrangeiro potenciado pelas vantagens fiscais - como aquelas que tanto irritaram as autoridades finlandesas. Pelo meio há pessoas que só encontram casas para alugar a valores próximos do salário médio e quem esteja a comprar uma habitação com spreads altos e taxas de juro cujo único caminho é o da subida. E é essa subida que fará aumentar os custos da dívida das famílias (nomeadamente as que têm menores rendimentos pelo peso da prestação nas despesas totais), das empresas e do Estado.

Na caixa de texto em questão, Centeno acaba com um último “no entanto”, em tom positivo e esperançoso, como aliás se esperaria de um documento político. “No entanto, Portugal tem hoje melhores condições para fazer frente a estes desafios do que em qualquer outro período nas últimas duas décadas”, diz o ministro, olhando para a esquerda e para a direita. Melhor do que há dez anos está certamente. Mas o essencial é mesmo olhar com cautela para os “no entanto” e dar-lhes a devida atenção.

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