Bellini dentro e fora da moldura

Os espectadores do século XXI podem comover-se de novo com a ópera de Bellini, nesta encenação “pintada” de I Capuleti e i Montecchi. Mas a fúria guerreira nunca deixará Romeu e Julieta amarem-se completamente. A não ser no céu... e na música.

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Cena final Bruno Simão
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A ópera de Bellini ainda comove os espectadores do século XXI? Parece que sim. A música do compositor italiano fez-se teatro — e pintura— na visão do encenador Arnaud Bernard. Apesar das suas contradições, I Capuleti e i Montecchi venceu e convenceu no Teatro de São Carlos.

Na belíssima abertura, uma espécie de museu “em construção” dá o mote para esta encenação que cruza habilmente a pintura, o teatro e a música. Estaremos num teatro, num palácio de Verona ou num museu moderno com quadros e molduras? Nesta versão de I Capuleti e i Montecchi, ópera de Bellini de 1830, estamos em todos esses lugares. Mas em vez de colocar a acção na Idade Média, como era suposto, o encenador optou por fazer das personagens homens e mulheres da Renascença. Épocas distintas sobrepostas e outros anacronismos que foram eficazmente resolvidos nesta produção estreada no sábado.

A orquestra, bem dirigida por Giampaolo Bisanti, conseguiu instalar no Teatro de São Carlos a música de Bellini, esse “menino querido” da ópera italiana da primeira metade do século XIX, dando à sua música o tempo certo para a convocação das vozes. E que vozes!

Nos papéis principais, duas grandes cantoras: a mezzo-soprano Alessandra Volpe foi um excelente Romeu, essa figura agudamente apaixonada, corajosa e incauta, tentando a paz para conseguir o amor mas disposto a morrer se preciso for. E é mesmo preciso, como é sabido. Volpe, apesar de uma voz por vezes um pouco fechada, foi impecável em quase todos os aspectos, aguentando um papel extremamente exigente do ponto de vista físico e vocal. Giulietta foi a soprano romena Mihaela Marcu, responsável por alguns dos mais potentes momentos musicais da noite.

Giulietta pergunta-se na sua magnífica entrada: “Para onde hei-de enviar os meus suspiros?” Ela dirige-se a Romeo, que não a pode ouvir, mas os verdadeiros interlocutores somos nós, os espectadores do século XXI. E a música de Bellini, terrível na sua beleza, violenta na sua paixão, à procura do movimento melódico mais simples, mais tocante, que melhor dê conta do amor transbordante, do amor total, essa música ainda pode comover os corações dois séculos adiante. Porquê? Porque a música de Bellini abre um espaço interior, deixa crescer a música em quem a ouve, não se impõe como a espada e a vingança se impõem nesta ópera em que grupos opostos gritam urros de guerra, infelizmente tão actuais.

A própria música é um acto de amor, aí está o segredo.

Nos outros papéis, houve muito boas prestações de Luís Rodrigues (o obstinado Capellio), Davide Giusti (no papel de Tebaldo, rival sincero de Romeo à altura deste na paixão e na coragem) e o barítono Christian Luján, num excelente Lorenzo, figura central e talvez a única com que o público se possa identificar, pois é o ajudante inevitavelmente falhado do amor impossível.

A encenação conseguiu, apesar de tudo, dar espaço à “voz” de Bellini, embora a certa altura a movimentação excessiva e a insistência nos empurrões entre as personagens crie alguma estranheza e possa desviar a atenção da essência que a música consigo carrega. Um empurrão no teatro pode ter força. Mil empurrões começam a perder o sentido. E, no entanto, o palco aguentou a música. Outro efeito repetido, mas no sentido oposto às correrias e aos empurrões, foi a criação de “quadros” pelo coro masculino, imagens paradas inspiradas em pinturas. Um coro masculino que esteve muito concentrado e vocalmente uno, contribuindo para a crescente tensão, ora guerreira, ora apoquentada com os destinos dos amantes.

A ópera termina “emoldurada”, enquadrando uma lição a tirar contra a intolerância. Mas o mais importante passou pela música de Bellini, e o que ela diz sem dizer. Afrontando a espada de morte que se ergue entre os corações.

 

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