Nem sequer correr atrás do prejuízo

Diz-se que o problema com a UE é decidir demasiado pouco e demasiado tarde. Aqui nem sequer é isso. Houve na UE quem alertasse para o que se estava a passar na Hungria.

Macron foi ontem ao Parlamento Europeu e parece que finalmente ouvimos de um governo da UE uma crítica ao que está a acontecer há anos na Hungria e na Polónia. Digo “parece” porque, ainda assim, Macron não foi capaz de designar nenhum desses países nem especificar a que ameaças se referia quando alertou para as derivas “iliberais” de certas democracias na Europa.

Pois bem, alguém deveria dar uma novidade a Macron e aos restantes governos da UE. O problema da Hungria já não o de é saber se Orbán está a construir uma democracia “iliberal”. O problema agora é ele destruir a democracia, ponto final. Numa democracia iliberal — conceito que o próprio Orbán introduziu há uns anos — as proteções constitucionais às minorias políticas são diminuídas, mas ainda há eleições e pode dizer-se que a maioria manda. Naquilo que Orbán está a construir agora na Hungria é o próprio cerne da democracia que está em causa: eleições livres e justas.

Diz-se que o problema com a UE é decidir demasiado pouco e demasiado tarde. Aqui nem sequer é isso. Houve na UE quem alertasse para o que se estava a passar na Hungria. No próprio Parlamento Europeu, há já cinco anos foi aprovado (no mesmo hemiciclo onde falou Macron) um relatório redigido por mim que descrevia ao pormenor o perigoso desvio aos valores inscritos nos tratados europeus que era a concentração autoritária de poder na Hungria de Orbán. Em poucas palavras, o que dissemos é que Orbán era um tirano com um plano. E como os tiranos não ficam quietos, a implementação do plano de Orbán perante a passividade dos outros governos no Conselho significa que a natureza da ameaça se alterou. Os governos nacionais nem sequer correram atrás do prejuízo. Ficaram parados enquanto viam Orbán redefinir os limites daquilo que se pode fazer numa união democrática.

No relatório que apresentámos há cinco anos, as ameaças de então estavam claramente descritas: entre centenas de alterações legislativas, constitucionais e institucionais, Orbán começou por criar leis para condicionar os media, alterar a constituição e o regimento parlamentar para diminuir os direitos da oposição e mudar o judiciário para mais facilmente controlar os juízes. Mas na altura deixámos também um alerta para o que seriam os passos futuros: a mudança das leis eleitorais.

Orbán mudou o sistema eleitoral húngaro (num debate em que a oposição não foi ouvida) e redesenhou os círculos eleitorais para garantir que a maioria de dois terços que tinha no parlamento se repetia mesmo com menos de cinquenta por cento dos votos. O sistema tem funcionado às mil maravilhas e ainda há dez dias o partido FIDESZ voltou a ganhar mais de dois terços dos deputados com menos de metade dos votos. Previsivelmente, Orbán apresenta-se depois no Conselho Europeu como grande vitorioso e os seus parceiros encolhem os ombros pensando que quem foi assim escolhido em eleições democráticas não pode ser contrariado.

O problema é que as eleições na Hungria já estão muito longe de serem sequer razoavelmente democráticas. Não só o sistema eleitoral já é o mais distorcido da UE, como os recursos do Estado são colocados ao serviço da campanha contra a oposição e a imprensa independente praticamente já não existe (a pouca que ainda existia fechou portas a seguir às eleições). Não sou eu que o digo, mas a própria Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) que, num relatório publicado logo após as eleições húngaras de dia 8 de abril concluía no essencial que estas ainda poderiam ser chamadas de livres, mas não de justas. Por este andar, daqui a uns anos não serão nem livres nem justas, e depois nem de eleições poderão ser chamadas.

O que há a fazer agora já é muito diferente daquilo que havia a fazer há uns anos. A UE precisa agora de se proteger a integridade das eleições no seu território, basicamente transpondo para lei europeia os critérios internacionalmente reconhecidos como sendo os mínimos para a realização de atos eleitorais livres e justos. Caso contrário, daqui a uns anos teremos um ou vários governos a bloquear políticas europeias, o que já é habitual, mas com uma diferença essencial: nem sequer saberemos se são governos legítimos ou não.

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