Empresa polémica da Altice arrisca ter de devolver ajudas públicas

A Anacom está a avaliar os lucros das empresas que construíram redes rurais de fibra com dinheiro público, para ver se houve sobrefinanciamento. Os ganhos da Fibroglobal, uma empresa da Altice, são muito superiores aos da média do sector.

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daniel rocha

A Anacom está a analisar os lucros das empresas que construíram redes de nova geração com dinheiros públicos nas zonas menos povoadas do país. Em causa estão as redes construídas pela DSTelecom no Norte, Algarve e Alentejo e, em particular, a infra-estrutura da Fibroglobal, a polémica empresa da Altice que explora uma rede nos Açores e outra na região centro do país (nas zonas que foram afectada pelos incêndios de Junho e Outubro) e que, segundo o regulador das comunicações, tem ganhos muito superiores à média do sector.

É esta empresa que os presidentes da Nos e da Vodafone garantem ser gerida “como um monopólio da Meo”, uma acusação que já vem do tempo em que a Fibroglobal era detida pela Visabeira (95%) e pela Meo (5%) e que se mantém agora que a posição da Visabeira está nas mãos da JMO, uma sociedade luxemburguesa, que tem como administrador José Manuel Monteiro, um português ligado a outras sociedades do universo Altice (a dona da Meo).

O objectivo da análise iniciada pela Anacom é o de verificar se houve algum caso de sobrefinaciamento que justifique que o Estado accione o mecanismo de reembolso previsto nos contratos com as concessionárias das redes, confirmou a entidade reguladora ao PÚBLICO. Isto porque os compromissos celebrados entre o Estado e as empresas que ganharam os concursos públicos prevêem que a existência de sobrefinanciamentos seja verificada a cada cinco anos de duração dos contratos (válidos por 20 anos).

Segundo a decisão emitida pela Comissão Europeia em 2011, quando Bruxelas considerou que estes subsídios eram auxílios de Estado compatíveis com as regras comunitárias, o que ficou definido é que “caso os operadores seleccionados realizem lucros suplementares, deverão reembolsar parte do auxílio estatal ao Estado português”.

Esse lucro suplementar (o sobrefinanciamento) verifica-se sempre que “o lucro decorrente da exploração da rede de alta velocidade seja superior à média registada no sector”, sublinhou a Anacom. A entidade liderada por João Cadete de Matos adiantou ao PÚBLICO que obteve autorização do Governo para questionar as empresas, já tem os elementos necessários e conta concluir a análise até 10 de Maio.

A DSTelecom recebeu um financiamento de cerca de 24 milhões para a rede do Alentejo e Algarve, e de aproximadamente 35 milhões para a do Norte. A Fibroglobal assegurou cerca de 36 milhões de euros para a infra-estrutura da região Centro e outros 12 milhões para o projecto dos Açores (que incluiu a construção de um cabo submarino para ligar Flores e Corvo ao resto do arquipélago).

A condição era que as concessionárias actuassem como operadores de telecomunicações para os próprios operadores de telecomunicações, garantindo-lhes o acesso grossista à rede “em condições abertas e não discriminatórias”, de modo a que todos pudessem competir no retalho em igualdade de circunstâncias, com ofertas comerciais que levariam melhores serviços às famílias e às empresas desses concelhos.

Se no caso da DSTelecom nunca se levantaram questões com a oferta grossista, que já é utilizada por todos os operadores, no caso da Fibroglobal a história é outra. Há anos que a Nos e a Vodafone se queixam que as condições definidas pela empresa só são viáveis para a Meo, que por um lado paga para usar a rede, mas por outro presta serviços à Fibroglobal que acabam por lhe anular cerca de 30% dos custos, fazendo com que seja a única empresa a conseguir usar a rede de forma rentável.

Apesar de as queixas se arrastarem há anos (a Vodafone e a Nos dizem que começaram as negociações com a Fibroglobal em 2013 e que, de lá para cá, a penetração dos serviços da Meo nestas regiões tem-se consolidado e fechado o mercado à concorrência), foi já em Outubro de 2017 que a Anacom concluiu uma análise aos preços em que constatou que os da DST são “substancialmente inferiores aos das ofertas da Fibroglobal”.

Por isso recomendou ao Estado, enquanto contraente público, que imponha uma descida de preços à empresa da Altice, que oscila entre os 24% e os 55% consoante as modalidades de acesso pretendidas pelo operador que usa a rede (que podem incluir mais ou menos investimento próprio). Com o aval do secretário de Estado das Infraestruturas, essa decisão preliminar da Anacom foi submetida a audiência prévia dos interessados, prevendo-se que a decisão final, que poderá “consubstanciar-se numa ordem do Estado português à Fibroglobal (…) para efectivar uma redução de preços”, seja emitida nas próximas semanas.

Embora a imposição de descida dos preços e a avaliação do sobrefinanciamento sejam temas distintos, na realidade, na análise que fez às ofertas grossistas a Anacom recolheu evidências que demonstram que os ganhos da Fibroglobal têm estado acima da média do sector desde 2014. No sentido provável de decisão divulgado em Outubro a entidade reguladora refere que “a Fibroglobal, após o início das operações (oferta grossista) em 2013, obteve sempre uma margem EBIT [margem de lucro líquido] positiva e, a partir de 2014, sempre superior à margem EBIT média do sector”.

Caso se considere apenas o ano de 2016, a margem líquida do sector foi, segundo a Anacom, de 8,5%, enquanto a da Fibroglobal foi de 26,1%, o que “excede largamente aquele valor de referência”. Compara, por exemplo, com os 14% da Meo, os 9% da Nos, os -0,9% da Vodafone, os -12% da Oni ou os 8,9% da DST no Alentejo e no Algarve e os 4,4% desta mesma empresa no Norte.

A Anacom admite que a “elevada margem da Fibroglobal poderá ser explicada (em parte) pelo facto de o seu projecto empresarial estar a correr melhor do que previa na sua proposta a concurso”, graças a “uma maior procura do que a inicialmente prevista, mesmo que apenas por um único operador (Meo) e através de uma única modalidade de acesso (PON)”. Por outro lado, refere ainda o regulador, “esta maior procura, induzindo eventualmente maiores economias de escala e explicando (também) os maiores lucros da Fibroglobal, permite que seja imposta uma diminuição” dos preços grossistas sem que a sua rentabilidade “seja posta em causa”.

O objectivo da recomendação enviada ao Governo visa assim, explica a Anacom, ajustar os preços da Fibroglobal “à realidade do mercado” e a “um nível razoável e não discriminatório”. Quando anunciou esta recomendação, a Anacom também revelou ter remetido à Autoridade da Concorrência (AdC) “o conjunto de informações e questões sobre a Fibroglobal de que tomou conhecimento”, no âmbito do seu “dever de participação de factos susceptíveis de serem qualificados como práticas restritivas da concorrência”.

Contudo, onde o regulador das comunicações vê eventuais infracções à Lei da Concorrência, a entidade reguladora especializada vê algo diferente: “A AdC considera que estão em causa questões de regulação sectorial e, marginalmente, outras de concorrência que estão a ser investigadas”, disse ao PÚBLICO fonte oficial da entidade presidida por Margarida Matos Rosa.

Nas contas de 2016 da Fibroglobal (as últimas disponíveis) verifica-se que, à semelhança dos anos anteriores, quase 100% do volume de negócios da empresa proveio da Meo: foram 10,06 milhões, num total de 10,124 milhões de euros (mais 9% do que em 2015). Em contrapartida, os serviços facturados pela Meo à Fibroglobal (como os “serviços especializados” e aluguer de condutas, espaços técnicos e postes) ascenderam (em linha com 2015) a três milhões. O lucro antes de juros, impostos, depreciações e amortizações (EBITDA) foi de 7,45 milhões de euros (mais 13%), enquanto o resultado líquido atingiu 1,8 milhões (mais 36%).

Nas contas da Fibroglobal figura ainda o empréstimo de quase 13,7 milhões de euros recebido em 2013, que a empresa reconhece, por um lado, que se trata de “um financiamento obtido da Meo”, mas que também identifica como tendo sido um suprimento concedido pela “casa mãe” (que é, desde Junho de 2016, a JMO), pelo qual pagou 926 mil euros de juros.

Ainda segundo as contas, dos 36,5 milhões a serem financiados a fundo perdido pelo FEDER e pelo FEADER na rede da região Centro, até Dezembro de 2016 a Fibroglobal já tinha recebido um total de 25,8 milhões de euros. Quanto ao projecto dos Açores, beneficiou de um financiamento 11,7 milhões de euros, que “já foi reembolsado”.

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