O mundo de Willy Loman está a ruir — e nós a assistirmos

Numa encenação de Carlos Pimenta, a Companhia de Teatro de Almada traz de novo aos palcos portugueses o clássico da dramaturgia norte-americana A Morte de Um Caixeiro-Viajante, de Arthur Miller. Ou como um homem privado do trabalho vê fugir-lhe a dignidade.

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As regras e as dores do capitalismo correm em fundo, de forma permanente, durante cada cena de A Morte de Um Caixeiro-Viajante. Rui Mateus
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Willy Loman tem 63 anos e é um caixeiro-viajante em vias de ser despedido. Está prestes a acontecer-lhe aquilo que a peça de Arthur Miller, A Morte de Um Caixeiro-Viajante, não faz por esconder no título. Estreado em 1949, em Nova Iorque, o texto coloca-nos diante de um homem em declínio, ainda na ressaca da Grande Depressão, e é habitualmente interpretado como um retrato duro do outro lado do sonho americano — aquele que diz respeito aos perdedores, aos falhados, àqueles que deram tudo à espera de se verem compensados por uma vida de trabalho, mas que se descobrem, afinal, descartáveis e pouco ou nada tendo avançado depois da casa de partida.

Carlos Pimenta, encenador que leva à cena a peça de Miller no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, até 6 de Maio, desconfia da facilidade com que se cola o texto a essa visão do sonho americano. E cita uma entrevista a Miller em que o dramaturgo terá sido questionado acerca da temática que quisera explorar. “Ele responde que a peça trata de um caixeiro-viajante que morre, da sua família, de uma determinada conjuntura económica e do grande amor por um dos filhos — centrando o texto num problema mais do universo familiar e social, e não tanto num problema do sonho americano.”

Se a crise de 1929 é um fantasma presente na peça, até porque a própria família de Arthur Miller terá sido seriamente penalizada pela depressão que se lhe seguiu, e forçada a mudar-se para Brooklyn — onde Willy Loman, a mulher e os filhos vivem —, Carlos Pimenta não resiste a traçar um paralelo com o clima que ainda hoje se faz sentir depois de as ondas da crise do subprime se terem alastrado por todo o mundo e deixado o Sul da Europa à beira da asfixia. O encenador vê Willy Loman (Ivo Alexandre) não como um homem perturbado e demente, mas como um descartado de uma sociedade capitalista que mastiga e deita fora os trabalhadores a partir do momento em que deixa de lhes reconhecer valor, capacidade produtiva. “Isso é algo que também vivemos hoje em dia”, diz, “esta transformação do mundo que, muitas vezes, as pessoas desta idade sofrem porque deixam de encontrar os mesmos rostos e os mesmos valores. O Willy ficou fechado no seu próprio mundo porque o sonho que ele tinha e que queria construir ruiu.”

Esgaravatar por dinheiro

As regras e as dores do capitalismo correm em fundo, de forma permanente, durante cada cena de A Morte de Um Caixeiro-Viajante. Sem emprego, Willy vê a dignidade esvair-se; e sem emprego, mais se torna imperativo depositar de forma quase desesperada a esperança num filho, Biff, que qualifica o modo de vida do pai como “uma maneira bem mesquinha de viver — apanhar o metro nas manhãs quentes de Verão, dedicar uma vida inteira a manter o stock, ou a telefonar, ou a vender ou a comprar”, 50 semanas de trabalho para duas de férias, quando a ele lhe chega “andar pelo campo, sem camisa”. Biff acredita que não foi feito “para andar a esgaravatar por dinheiro”. Nem sabe fazê-lo.

Para cada história de um perdedor, há sempre uma história de um vencedor — como medida perfeita, como lembrete constante do que alguém podia ter sido e não foi, como espelho que devolve uma imagem falha em ousadia, como sintoma de um sistema que glorifica aqueles que vingam e castiga, repetidamente, todos os outros que ficam pelo caminho. O reverso da história de Willy chama-se Ben, seu irmão, cuja presença na peça quase se limita à repetição da sua história de vida resumida na frase: “Quando tinha 17 anos fui para a selva, e quando saí de lá tinha 21, e meu Deus, se não saí de lá rico!” É uma figura que lembra a Carlos Pimenta os actuais tycoons da tecnologia, Mark Zuckerbergs, Sean Parkers e afins, jovens milionários de Silicon Valley que se cumpriram antes dos 30 anos. Ben, uma figura deliberadamente opaca, nada nos diz sobre quem terá ou não massacrado e espezinhado para recolher os diamantes que lhe trouxeram fortuna.

E é o conflito entre pai e filho, entre Willy e Biff, que alimenta boa parte da peça. Não apenas uma projecção de pai que quer que o filho cumpra aquilo em que ele falhou; não apenas garantir que o percurso de Willy não se esgota na sua morte e tem possibilidade de sair ainda vitorioso na sua passagem de testemunho; não apenas um choque geracional; mas uma grande diferença de noção de felicidade, entre a submissão a um sistema e um código de valores, e a rejeição da ideia de que uma vida se valoriza somente se respeitar o figurino que o capitalismo tão detalhada e brutalmente gizou.

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