Dona Ivone Lara, o adeus a uma lenda do samba

A cantora e compositora brasileira Dona Ivone Lara, figura lendária do samba, morreu esta segunda-feira no Rio de Janeiro. Tinha 97 anos e deixa um imenso legado.

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Dona Ivone Lara, numa foto de promoção DR

Nunca abandonou a música. Em palcos ou aparições públicas na televisão, Dona Ivone Lara mantinha-se activa, apesar da fraqueza física dos últimos dias. À TV Globo, a sua nora disse inclusive que “ela estava sempre procurando um caderninho pra escrever uma música, estava sempre cantarolando pro neto.” Mas uma anemia acentuada obrigou-a a um internamento, no exacto dia do seu 97.º aniversário, e dele já não recuperou. Morreu na passada segunda-feira, dia 16, no decorrer de uma insuficiência cardio-respiratória.

Nascida Yvonne Lara da Costa em 13 de Abril de 1921, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, ganhou o “Dona” como sinal da reverência que lhes prestaram, ao longo de décadas, músicos e compositores, uma reverência que contagiou todo o Brasil. Filha de uma cantora e de um violonista (que haviam de lhe morrer cedo, ele aos 3 anos e ela aos 12), foi criada pelos tios, “com quem aprendeu a tocar cavaquinho e a ouvir samba”, como reza a sua biografia. Teve também, por essa altura, aulas de canto com Lucília Villa-Lobos, mulher de Heitor Villa-Lobos, compositor que lhe elogiava o canto.

Primeira, entre compositores

O facto de ter casado, aos 25 anos, com Oscar Costa, filho do presidente da escola de samba Prazer da Serrinha, Alfredo Costa, levou-a a imergir no universo sambista, conhecendo aí dois dos seus futuros parceiros de composição, Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola. Integrou depois o Império Serrano, logo na sua fundação, em 1947, e em 1965 foi reconhecida como parte da ala de compositores da escola de samba.

No Verão do ano 2000, quando Dona Ivone Lara actuou nas festas da cidade de Lisboa a convite de Paulinho da Viola, este disse ao PÚBLICO: “Talvez tenha sido a primeira mulher a ser admitida numa ala de compositores numa escola de samba. Ela faz um tipo de samba popular e tem músicas de muito sucesso gravadas por outros cantores e cantoras.” Uma é Sonho meu, gravada e celebrizada por muitas outras vozes. Outras são Alguém me avisou, Acreditar, Minha raiz ou Mas quem disse que eu te esqueço. Várias das suas muitas composições foram cantadas por Clara Nunes, Maria Bethânia, Elba Ramalho, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Paula Toller, Marisa Monte, Adriana Calcanhotto, Martinho da Vila, Zélia Duncan, Criolo ou Roberta Sá, entre outros. Em 2014, na sequência de várias homenagens à sua obra e carreira, participou num “songbook” a ela dedicado (chamado “Sambabook”) com uma canção inédita, composta com o seu neto André e gravada com Diogo Nogueira.

O legado de uma imensa alegria

Enfermeira, profissão que foi exercendo a par da música e que só abandonaria quando se aposentou, em 1977, Dona Ivone Lara teve a sua vida, carreira e obra espelhadas num livro, publicado quando se celebravam com múltiplas iniciativas os seus 95 anos: Dona Ivone Lara – A Primeira Dama do Samba, de Lucas Nobille (Sonora Editora, 2016). O velório da cantora e compositora, anunciaram agências e jornais brasileiros, decorre na escola de samba à qual esteve ligada desde a sua fundação, a Império Serrano.

No ano 2000, num momento da sua actuação em Lisboa perante a multidão que acorreu ao relvado da Torre de Belém na noite de 21 de Junho, Dona Ivone Lara exclamou, quando a incitaram a continuar: “Vocês têm que poupar a velha, hã? Eu sou uma anciã, gente!” Mas cantou e dançou como poucos dos que ali estavam, mesmo os mais jovens. E é esse espírito que dela fica, como legado: uma imensa alegria caldeada no samba.

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