Cântico contra o sofrimento, a música dos prisioneiros do Holocausto chega agora ao palco

Peças compostas em campos de concentração e extermínio foram apresentadas pela primeira vez em Jerusalém, num concerto no domingo.

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Reuters/KACPER PEMPEL

Durante três décadas, o compositor italiano Francesco Lotoro procurou e reuniu milhares de músicas, sinfonias e óperas, escritas durante o Holocausto por prisioneiros dos campos de concentração e extermínio. Este domingo, as letras e melodias criadas nos campos nazis foram apresentadas em Jerusalém no espectáculo Notes of  Hope (Notas de Esperança, em português), perante uma plateia de três mil pessoas.

Lotoro, professor de música e pianista, reuniu cerca de oito mil peças, escritas em todo o tipo de papel que os prisioneiros conseguiram encontrar, incluindo papel higiénico, jornais, bilhetes, blocos de notas e papel de embrulho. Outras não foram escritas, mas antes memorizadas. Chegaram até aos dias de hoje pela mão e memória dos sobreviventes, agora com idades entre os 80 e 90 anos. Foram encontradas em livrarias, arquivos, sótãos e através de entrevistas a sobreviventes em várias partes do mundo, conta Lotoro ao jornal britânico Guardian.

Foram cantadas em alemão, checo, hebraico, romeno e iídiche e, apesar dos tempos sombrios, da tortura e sofrimento sob as quais foram compostas, a maioria das músicas tinham um ritmo alegre. “Cantar era algo que fazia esquecer a fome”, explica Manka, uma das sobreviventes do Holocausto.

Aviva Bar-On tinha nove anos quando gravou na memória a música composta pela poetisa e compositora judaica Ilse Weber. Autora do livro Mendel Rosenbusch: Tales for Jewish  Children (Mendel Rosenbusch: contos para crianças judias, numa tradução livre), Weber e a família foram enviadas para Theresienstadt, campo de concentração na actual República Checa. Foi lá que escreveu vários poemas e músicas. Todas as noites cantava-as para crianças e idosos no campo.

Quando o marido foi enviado para Auschwitz, outro campo, Ilse Weber, que estava em Theresienstadt, decidiu juntar-se a ele, voluntariamente, com o filho de ambos, pois não suportava a ideia de ver a sua família separada. Acabou por ser enviada para uma câmara de gás com o filho logo à chegada a Auschwitz, encontrando a morte em 1944, aos 41 anos.

“Era uma mulher fascinante e muito sorridente”, recorda Bar-On, antiga prisioneira em Theresienstadt. “Tocava bandolim e cantava e as músicas dela eram muito divertidas. Agora sou a única pessoa no mundo que se lembra delas”, partilhou.

Este domingo, com 85 anos, a sobrevivente foi uma das vozes que se ouviu entre a Orquesta Sinfónica de Ashdod, onde cantou uma das músicas de Weber, nunca escutadas em público desde a Segunda Guerra Mundial.

Recordando os anos de “fome, doenças e epidemias”, Aviva Bar-On sublinha que “musicalmente, a vida nos campos era muito rica”. Ali, diz, estavam “famosos cantores de ópera e músicos e elevada qualidade”, “vários artistas e cantoras de coro”. “As pessoas queriam ser optimistas. Estávamos sempre à procura de algo positivo, porque a vida era terrível. A morte acontecia todos os dias”, explica Bar-On.

Lotoro sublinha que o seu projecto visa recuperar a herança das composições criadas nos campos de concentração dos artistas que, apesar de terem perdido a liberdade, e sob inimagináveis circunstâncias, conseguiram preservar o seu legado através da música.

No entanto, nem toda a música que acontecia nos campos de concentração era fruto da procura de um escape ao sofrimento. Muitos artistas eram obrigados a actuar para os guardas nazis, o que lhes poderia valer mais uns dias de vida, mas não garantia a sobrevivência, conta ao Guardian Alan Ehrlich, sobrinho de um dos artistas que não resistiu aos campos de concentração. Max Ehrlich, seu tio e um famoso artista de cabaret alemão, foi enviado para Auschwitz em 1944. Quando foi reconhecido por um dos guardas nazis, foi obrigado a actuar antes de ser executado.

Presente no concerto, Alan Ehrlich vincou a importâncias de as gerações futuras conhecerem a história do Holocausto. “Hoje em dia há histórias sobre o Holocausto que são totalmente mentira. É muito importante estabelecer que o que aconteceu foi real”.

Na semana passada, foi divulgado um estudo que sugere que os horrores do Holocausto começam a desvanecer na memória colectiva.

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