Canábis – uso terapêutico

Numa altura em que se debate publicamente em Portugal o uso da canábis com finalidades terapêuticas, os autores apresentam uma revisão sumária dos principais aspectos científicos e clínicos a ter em conta sobre este assunto.

Desde há milhares de anos que se encontram referências históricas ao uso terapêutico da Cannabis sativa e dos seus derivados. Devido à intervenção humana e ao seu cultivo, existem variações das características das várias espécies da planta, que tem sido usada com múltiplas finalidades, para além das duas mais conhecidas, as recreativas e as terapêuticas. Da planta Cannabis sativa foram identificados e isolados mais de 500 compostos, dos quais mais de 100 são canabinóides. Existe uma grande variação nas proporções dos diferentes compostos nas várias espécies da planta. Também as concentrações variam bastante de acordo com as partes da planta: caule, folhas ou flores. O efeito psicológico responsável pelo seu potencial de reforço positivo e uso recreativo é devido ao THC (?9–tetrahidrocanabinol) e às suas propriedades simultaneamente estimulantes e sedativas, que provocam sensação de bem-estar, relaxamento, aumento da empatia, alteração da vivência da passagem do tempo e aumento da intensidade das sensações e percepções, entre outras. Esta acção é mediada pela actuação em receptores no sistema nervoso central e de circuitos neuronais que activam as áreas de reforço e centros de recompensa. Os dois canabinóides derivados da Cannabis mais importantes e mais estudados são o THC e o Canabidiol (CBD), embora outros sejam também importantes e a sua acção conjunta seja algo diferente da acção isolada de cada um dos componentes.

Desde meados do século XIX que se tem vindo a fazer investigação científica sobre a Cannabis e sobre os canabinóides e os seus efeitos no organismo. Os progressos nestas investigações intensificaram-se nos últimos anos. Em consequência, têm-se vindo a identificar e isolar os diferentes compostos da planta e a proceder ao estudo dos mecanismos de acção de cada um destes compostos. Esta pesquisa levou à descoberta de receptores canabinóides no organismo (CB1 e CB2) e à descoberta de canabinóides naturalmente produzidos no cérebro (endocanabinóides) e das suas funções fisiológicas. Sabe-se que o sistema endocabinóide tem importância na memória, regulação do apetite, regulação do stress e ansiedade, imunidade, percepção da dor, regulação da temperatura corporal e regulação da vigília/sono, entre outros. A presença deste sistema, dito endocanabinóide, explica as acções dos canabinóides derivados da planta (fitocanabinóides), que vão actuar nos mesmos locais, embora em quantidade e intensidade muito maior que os endocanabinóides naturalmente produzidos em condições fisiológicas. Os receptores CB1 predominam no cérebro e os CB2 predominam no sistema imunitário. Os dois endocanabinóides mais importantes são a anandamida e o 2-AG (2-arachidonoylglicerol). Nos últimos anos tem também havido o desenvolvimento de canabinóides sintéticos, design drugs, normalmente mais potentes que os derivados da planta (e com muito mais efeitos colaterais) e que têm sido usados sobretudo com fins recreativos. Podemos assim resumir a existência de canabinóides endógenos, que ocorrem naturalmente no cérebro (endocanabinóides), os derivados da Cannabis sativa e suas variantes (fitocanabinóides) e os canabinóides de síntese (design drugs).

Em 1994 foi sintetizado o primeiro antagonista dos receptores CB1, o Rimonabant. Também têm vindo a ser estudados os enzimas responsáveis pela síntese e pela metabolização dos endocanabinóides. Em 2005, um extracto padronizado de THC e CBD para pulverização bucal, designado comercialmente por Sativex, foi aprovado no Canadá e introduzido também no mercado português em 2012. Tem indicação no tratamento da espasticidade da esclerose múltipla. Também nos EUA estão disponíveis outros medicamentos de síntese, análogos do THC, para tratamento das náuseas e vómitos resultantes da quimioterapia, para o tratamento da dor crónica e para estimular o apetite nos doentes de cancro e VIH/sida.

Os dois compostos derivados da planta que actualmente têm mais importância nas potenciais aplicações terapêuticas são o THC e o CBD. Existem em diferentes proporções nas diferentes variedades da planta e mesmo nas várias partes da mesma planta, pelo que a sua composição e padronização para uso terapêutico é difícil e requer o cultivo em condições altamente padronizadas e o uso de sementes pré-seleccionadas. Pequenas variações na qualidade do solo e disponibilidade de água e luz podem traduzir-se em variações importantes das concentrações de THC e CBD, comprometendo a eficácia. Apesar disso, alguns países permitiram a utilização da planta Cannabis sativa e dos seus derivados para uso terapêutico. Com finalidades recreativas, alguns cultivadores têm vindo a manipular geneticamente a planta no sentido de aumentar o teor de THC e diminuir o de CBD. O uso continuado de THC está associado ao desenvolvimento de psicoses na idade adulta, nos adolescentes que fazem um consumo mais pesado. Os efeitos do consumo continuado são particularmente negativos na adolescência devido a características do metabolismo destas substâncias que levam à sua acumulação nas células do tecido adiposo, seguida de libertação para a corrente sanguínea de quantidades muito baixas, mas suficientes para interferir com a formação de novas ligações entre neurónios no cérebro adolescente. Isto potencia o aparecimento de psicoses no jovem adulto. Os estudos mostram, para além dum risco aumentado em função das doses, uma possível interacção com os genes de susceptibilidade para a psicose. Também estudos experimentais em adultos saudáveis mostram que o THC pode induzir transitoriamente sintomas psicóticos e alterações cognitivas. O CBD não tem as acções que o THC apresenta, em termos de reforço e actuação nos centros de recompensa, parecendo até ter acções no sentido oposto aos do THC nos receptores CB1. Também, por inibir alguns enzimas responsáveis pela metabolização da anandamida, pode aumentar a acção dos endocanabinóides normalmente produzidos no cérebro. Teria assim um efeito protector relativamente aos efeitos indutores de sintomas psicóticos do THC. Alguns ensaios clínicos mostraram o potencial uso do CBD como antipsicótico. No futuro poderá vir a ser útil distinguir “canábis para uso médico” de “CBD para uso médico”.

A administração da canábis para uso médico pode ser feita por diferentes vias, dado ter geralmente uma razoável absorção. Pode ser administrada por vaporização, inalação, por via oral, sub-lingual, rectal, injectável, em sprays ou por via trans-dérmica. O seu uso através da inalação do fumo da planta levanta questões e riscos importantes, em grande parte idênticos às do tabaco fumado. O fumo da canábis contém inúmeros compostos orgânicos e inorgânicos. O alcatrão é semelhante ao encontrado no tabaco e já foram identificados mais de 50 carcinogéneos no fumo da canábis. Isto contraindica claramente a via inalatória do fumo como uma forma de administração aceitável do ponto de vista médico.

Têm-se efectuado estudos clínicos para avaliar a eficácia e a tolerância da canábis e dos seus derivados num considerável número de patologias e situações clínicas. De uma maneira geral, muitos destes estudos são metodologicamente fracos e de baixa qualidade, permitindo unicamente conclusões muito limitadas. Há no entanto evidência substancial do seu efeito benéfico no tratamento da dor neuropática crónica, da dor no cancro, das náuseas e vómitos na quimioterapia e da espasticidade na esclerose múltipla. Existe evidência moderada do seu efeito benéfico no aumento do apetite e peso em doentes VIH/sida, nas perturbações do sono, na melhoria dos sintomas na doença de Gilles de la Tourette e nas perturbações de ansiedade. Apesar dos estudos existentes não serem tão robustos como seria desejável, estes mostram consistentemente a ausência de efeitos secundários severos. Mostram ainda não existir diferença significativa, quer no benefício a nível de controlo da dor neuropática, quer nos efeitos secundários resultantes, quando se comparam medicamentos contendo canabinóides com a utilização de um extracto da planta da Cannabis produzida em condições padronizadas. Neste sentido, se a disponibilização destes extractos, em farmácia e através de receita médica, facilitar a acessibilidade aos doentes, justifica-se que seja seriamente considerada pelas autoridades reguladoras. Claramente que esta é uma área que, no futuro, necessita de estudos clínicos controlados mais robustos, sobretudo na depressão, perturbações de ansiedade, perturbações do sono, psicoses e glaucoma.

Para a introdução de um novo medicamento existem procedimentos padronizados pelas entidades reguladoras. Um novo medicamento tem que passar por várias fases de estudo e isto também se deve aplicar à Cannabis e seus derivados para um eventual futuro uso terapêutico. A Fase Pré-clínica do desenvolvimento de um novo medicamento consiste em estudos laboratoriais e experimentais que envolvem também as técnicas de manufactura e de controlo de qualidade. A Fase I é feita em voluntários saudáveis para determinar a segurança e dosagens. A Fase II destina-se a avaliar a eficácia e segurança num número reduzido de doentes. A Fase III procede ao uso em ensaios clínicos controlados num grande número de doentes (normalmente multi-cêntricos) para avaliar a eficácia e segurança. A Fase IV corresponde ao período posterior à aprovação pelas entidades reguladoras do medicamento e da sua introdução no mercado, para vigilância. Outros estudos são também normalmente efectuados e consistem em estudos clínicos controlados de comparação directa (head to head) com outros medicamentos já existentes com a mesma indicação terapêutica e estudos de fármaco-economia.

Numa altura em que se debate publicamente em Portugal o uso da canábis com finalidades terapêuticas, os autores apresentaram uma revisão sumária dos principais aspectos científicos e clínicos a ter em conta sobre este assunto.

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