Da Síria a Centeno, o teatro das aparências

Como pensar e tirar conclusões sobre esses assuntos, se não formos economistas encartados ou analistas sofisticados dos jogos de guerra e da política internacional?

A actualidade fez convergir no tempo dois acontecimentos completamente diversos e sem nenhuma ligação entre si, mas aos quais se pode aplicar uma idêntica "moral da história": quer os ataques desencadeados na madrugada de sábado pelos EUA, a França e o Reino Unido contra alvos sírios, quer a apresentação do Programa de Estabilidade (PE) pelo ministro Mário Centeno, sexta-feira ao princípio da noite, e as reacções que suscitou à esquerda e à direita, inscrevem-se num cenário político cada vez mais frequente nos dias que correm – o do teatro das aparências. Ou seja, para além dos acontecimentos em si, os respectivos actores simulam acções muitas vezes virtuais e cujo sentido último escapa ao discernimento do cidadão comum.

Basta ler, ver e ouvir o que os media divulgaram sobre o PE ou os ataques à Síria para que esse cidadão comum fique confundido ou perplexo sobre a sua capacidade de apreensão do que lhe é apresentado. Como pensar e tirar conclusões sobre esses assuntos, se não formos economistas encartados ou analistas sofisticados dos jogos de guerra e da política internacional?

Faça-se um exercício simples, lendo, por exemplo, o que a edição de ontem do PÚBLICO traz sobre o PE de Centeno. Percebem-se mais ou menos as linhas gerais e objectivos finais, mas quando nos deparamos com a minúcia intrincada dos números e projecções, o mais provável é que nos sintamos desorientados e incapazes de formular uma opinião própria perante a dificuldade de vislumbrar uma alternativa ao cenário proposto pelo ministro. De igual modo, também se percebem os objectivos imediatos da retaliação das potências ocidentais contra o uso de armas químicas pelo regime sírio – incluindo a preocupação de evitar uma escalada muito perigosa no confronto com a Rússia –, mas fica a pairar uma enorme dúvida sobre a utilidade dissuasora ou a natureza sobretudo simbólica da iniciativa. Além disso, os motivos que levaram Trump, Macron e May a intervir contra a barbárie do ditador sírio – mesmo tendo em conta as indiscutíveis razões morais que lhes assistiam – fazem pensar nas dificuldades que eles enfrentam nos respectivos países e os pressionam a empreender uma "fuga para a frente" (Trump cada vez mais enredado no folhetim da sua cumplicidade inconfessável com Putin, May às voltas com a quadratura do círculo do "Brexit" e Macron perante um clima de descontentamento social em vários campos). Daí o ambiente propício ao teatro das aparências.

Quanto a Centeno, percebe-se que pretende aproveitar a conjuntura económica favorável para consolidar uma almofada preventiva contra futuras – e imprevisíveis – derrapagens. Perante uma relação de forças na União Europeia (UE) que impede as veleidades de uma reestruturação da dívida, o ministro português – ainda para mais condicionado agora pelo seu papel de presidente do Eurogrupo e a ambição de vir a ser comissário europeu depois do fim da actual legislatura – não encontra caminho fora da ortodoxia financeira dominante na UE, da qual estamos reféns. Temos, por isso, de nos portar bem para evitar males maiores.

Mas mesmo que o exercício de Centeno não venha a pôr em causa a "geringonça" – apesar das ameaças do Bloco e do PCP, outra cena possível no teatro das aparências –, o que parece cada vez mais evidente é que a sensatez e prudência extrema das suas contas entram em choque com a degradação dos serviços públicos, nomeadamente em áreas tão sensíveis como a da pediatria oncológica (que foi notícia esta semana, mas reflecte uma situação muito mais generalizada). São esses, afinal, entre outros, os limites do teatro das aparências: o número mágico de 0,7% do défice não se alcança sem contrapartidas indesejáveis e socialmente insustentáveis.

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