Benfica e FC Porto, de velhos amigos a eternos rivais

O clima de quezília entre os clubes nem sempre foi uma realidade. O PÚBLICO ouviu dois historiadores para compreender qual foi o ponto de viragem na relação institucional.

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Joga-se este domingo, no Estádio da Luz, uma partida que terá grande influência nas contas do título nacional. O clássico entre Benfica e FC Porto, independentemente da posição classificativa das equipas, é sempre de emoções fortes, disputada num ambiente de crispação entre os dois clubes. Mas, há já várias décadas, houve uma altura em que as partidas entre os rivais eram vividas com cordialidade e estima entre os dirigentes.

Esta história começa quando, em Outubro de 1893, um jovem comerciante de vinho do Porto, António Nicolau d’Almeida, funda o Foot-Ball Club do Porto. Onze anos volvidos, em 1904, nasce o Sport Lisboa, após uma reunião na Farmácia Franco, na qual estiveram presentes 24 elementos que são tidas como os fundadores do clube. Entre estes indivíduos figurava Cosme Damião, que viria a tornar-se líder das “águias” nas suas primeiras décadas de vida.

O primeiro jogo entre as duas equipas ocorreu na cidade Invicta, em 1912. O convite foi endereçado aos lisboetas pelos dirigentes do FC Porto. Os dois jogos do dia — entre as reservas, na parte da manhã, e entre os jogadores principais, no período da tarde — foram realizados num ambiente de cordialidade. Os “dragões” chegaram mesmo a pagar as viagens de comboio das “águias” que, por sua vez, assumiram as despesas de alojamento. O Benfica venceu ambos os jogos, goleando os "dragõe"s por 8-2 no jogo entre as equipas principais. Apesar da pesada derrota, o encontro ficou marcado pela boa disposição entre os dirigentes e adeptos.

Anos de amizade e domínio "encarnado"

Ao longo do tempo, o clima de bom relacionamento entre os clubes manteve-se. A 28 de Maio de 1952, o Estádio das Antas foi inaugurado e, no primeiro jogo no seu novo estádio, os “dragões” convidaram novamente as "águias” para a festa. Dois anos depois, foi a vez de o Benfica retribuir a gentileza, recebendo o FC Porto no primeiro jogo do Estádio da Luz. Ambos os clubes venceram a partida de inauguração na casa dos rivais, levando para as respectivas cidades troféus representativos das celebrações.

Ricardo Serrado, investigador e historiador de desporto, em conversa com o PÚBLICO, lembra que “o FC Porto foi considerado, durante muito tempo, um quarto grande”. Benfica, Sporting e Belenenses eram os principais clubes nacionais, nessa época. “Nos anos 1940, 50, 60, o FC Porto era um clube inofensivo para o Benfica, daí serem bastante próximos”, avalia.

No clube da Luz, viviam-se tempos áureos: Eusébio, Mário Coluna, José Águas, entre outros vultos do futebol português, venciam título atrás de título, chegando mesmo a ser bicampeões da Europa, derrotando Barcelona e Real Madrid nas finais da Taça dos Campeões Europeus de 1961 e 1962, respectivamente. Ainda na mesma década, o Benfica perdeu três finais da mesma competição e venceu sete campeonatos nacionais.

“A partir da década de 1960, o Benfica ultrapassa claramente o Sporting a nível de títulos conquistados e vê-se uma competitividade maior entre esses dois clubes. E, depois vemos a emergência do FC Porto, com Pinto da Costa e Pedroto”, acrescenta César Rodrigues, também investigador em História e Desporto. 

O amanhecer da era Pinto da Costa

É o dia 23 de Abril de 1982 que marca a chegada de Jorge Nuno Pinto da Costa à presidência do FC Porto. Há, praticamente, 36 anos, o dirigente iniciou uma revolução no clube, após se ter oposto ferozmente ao seu predecessor, Américo de Sá. Ricardo Serrado não tem dúvidas: “Se olharmos para o FC Porto antes e depois de Pinto da Costa, vemos dois clubes completamente distintos”.

Para o historiador, este foi o ponto de viragem na relação entre “dragões” e “águias”: “É uma mudança de 180 graus. O estilo que Pinto da Costa cultivava era completamente oposto ao que o FC Porto estava habituado, um clima hostil de guerrilha contra o Sul”, descreve, considerando que o Benfica não foi suficientemente rápido a adaptar-se a esta nova realidade. “Penso que demorou algum tempo a reagir. Durante os anos 1980, 90, [o Benfica] viu-se relegado para segundo plano e reagiu também com alguma hostilidade”.

O sucesso nacional e internacional dos portistas — que desde a chegada de Pinto da Costa conquistaram sete títulos internacionais e um inédito pentacampeonato — veio reverter a hegemonia que se verificava no futebol português. Um quadro que, no entender de César Rodrigues, "torna menos apetecível, para os adversários que lutam com o FC Porto pelo campeonato, uma relação de proximidade”.

Para o afastamento entre os dois clubes contribuiu também, segundo o investigador, a ausência de "um oponente na cidade do Porto que distribuísse vontades enquanto adeptos”. “E constatava-se uma especificidade particular entre Porto clube e Porto cidade, também pelo facto de não haver um outro clube que ombreasse com o FC Porto na cidade. O facto de existirem Benfica e Sporting dificilmente agregará da mesma forma toda a cidade, quando estamos a falar de um clássico Benfica-FC Porto”, concretiza. 

João Manuel Pinto: "Íamos para uma guerra"

João Manuel Pinto viveu o clássico, dentro de campo, com as duas camisolas. Representou o FC Porto de 1995 a 2001 e acabou por se mudar para a Luz em 2001, jogando de "águia" ao peito durante duas temporadas. O antigo defesa central recorda que, naquela época, existiam algumas diferenças na maneira como os clubes viam o jogo: “É um clássico, claro que queres ganhar. Mas sentia que era diferente. No Benfica não íamos para uma guerra, íamos para um jogo de futebol. No FC Porto víamos isso [o jogo] como uma batalha”, assume, em conversa com o PÚBLICO.

Assumidamente benfiquista, o defesa garante que deu sempre o máximo pelos “azuis e brancos”: “Quando vestia a camisola do FC Porto, ninguém era mais portista do que eu”, anota. A memória que guarda com mais carinho dos clássicos na Luz é a da vitória dos “dragões” sobre as "águias", na Supertaça de 1996, por cinco bolas a zero. Para além do resultado volumoso, João Manuel Pinto mantém uma lembrança especial: “Fui ter com o meu ídolo, o Valdo [jogador do Benfica], e pedi-lhe a camisola. São estes momentos que são bonitos no futebol”.  

Esta é a face mais luminosa do jogo. A outra é a que tem imperado fora dos relvados nesta época, com constantes trocas de acusações, processos judiciais e provocações permanentes, jornada após jornada. César Rodrigues não tem dúvidas quando afirma que “os protagonistas [do futebol] não sabem respeitar o próprio desporto”, mas não hesita em distribuir responsabilidades: "Em última instância, ninguém pode ficar livre de culpas neste papel: os dirigentes, a quem nós imputamos grande parte da responsabilidade; a comunicação social, que dá eco a essas linhas editoriais que lhes são mais favoráveis a nível de audiência; e os adeptos, que consomem essa informação".

Texto editado por Nuno Sousa

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