Todos os verdes que existem — crónica de São Miguel

O leitor Luis Robalo partilha a sua experiência na ilha açoriana.

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Um livro para uma viagem. Escolher. Da boa decisão depende muito o sucesso da viagem. Se o viajante vier a entediar-se, um livro bom é uma infusão de alheamento, resgate do tempo e do esforço despendidos para nada.

Poesia, a companhia dos poetas. Dizem muito gastando poucas palavras. O que sobra do tempo é para o silêncio precioso que nas vidas corrediças todos precisam.

Os bons versos lêem-se rapidamente e basta um segundo ou o que resta da vida de cada um para se remoer neles. Alguns versos exigem uma eternidade, que ninguém tem. Esses, devem-se para já guardar e levar depois, na última viagem, a derradeira.

Há casos relatados em que os livros onde estão depositadas as palavras que o viajante transporta consigo se apaixonam eles mesmos pelos locais visitados. Amores à primeira vista. Ficam ligados nas memórias dos momentos cruciais, onde aquele verso se colou ao pirilampar de um céu estrelado; a palavra fugiu com o mar a perder de vista; a pontuação, toda, amantizou-se com aquela específica paisagem.

Vai-se para São Miguel, uma das portas de entrada do paraíso, com o eco de uma frase de Gloria Anzalduia que diz “penso na fronteira como o único ponto da terra que contém todos os lugares dentro de si”.

São Miguel acolhe todos os verdes da terra, avista até se turvarem horizontes os azuis do imenso líquido ignoto, gera no útero os pretos incandescentes, todas as variantes do negro, magma solidificado, âmago das dinâmicas da terra.

Nessa exuberância do verde absoluto, sobressaem em parcelas quadriculadas, geométricas puras, muros de pedra lávica, alinhados ao mar, cavalgando para ele. Depois, para que nada pareça brutal, a exuberância das hortênsias e outras flores com nomes poéticos, apazigua as paisagens. É aí que se desanuviam as preocupações, se pode viver mais um dia, porque valeu a pena ter olhado para uma flor.

Esponjo os ares para memorizar todas as fragâncias pacíficas.

Não há picos nem miradouros nem lagoas nem portos nem casas mais ou menos bonitas na ilha de São Miguel. Tudo é ingénuo, é por isso que, sem o saberem, os açorianos são de doçura e trato, mesmo quando fingidamente brutos e bestas e feios e muito gordos e muito magríssimos e de olhar não presente, passado, pobreza.

Há locais em São Miguel onde não apetece estar, que se está triste, onde é mais do que melancolia, é a frustração da impossibilidade de ser feliz.

Sentam-se a olhar para o mar numa baía cinzentamente atroz, vendo o nada. Aí estão, os mesmos desde o primeiro dia em que esta terra recebeu homens, sentados nesse muro para sempre.

Depois vem tudo o resto, que é tudo. E esse tudo é que complementa as poesias que se trouxeram no porão do avião. Juntas estas e os verdes, os azuis, os pretos, as outras, e toda a infinidade de coisas de tirar o fôlego a assombrarem a alma de amarelo e luz, fazem um festim que se prolonga pelas noites e pelos dias fora.

É o divino Espírito Santo.

Quero um passaporte de entrada e usufruto permanente e definitivo para mim, alguns que amo e todos os açorianos, mesmo os tristes. Depois, podemos escondê-las só para nós, as ilhas.

Quero nadar numa noite de céu puro, iluminado por uma lua cheia prenha, num certo pequeno lago de águas densas, ocres, quentes, ferruginosas, nas Furnas.

Quero descer à lagoa do Fogo e passar o dia passeando-me banhando-me nela, Adão no Jardim das Delícias.

Quero tirar uma fotografia, num pico tendo no fundo as Sete cidades, o contraste das cores das águas e enviá-la para todos os locais de outras geografias desconhecidas.

Quero enviar-lhes a fotografia porque é bonita, e pode dar-lhes esperança.

Quero ficar estonteado com a profundidade dos vales onde os raios de sol se espraiam causando estragos de luz parecendo uma luminotecnia estudada e propositada em cenários não construídos pela mão humana, onde esta amanha de amanhar com arados, as terras vulcânicas férteis. Quero banhar-me nas reentrâncias, pequenos portos, em praias com calhaus ancestrais.

Quero viajar nos frágeis barcos de madeira e fingir que caço baleias com um arpão de brincar.

Quero muito porque sou um ateu muito crente, entrar em todas as igrejas e sentir que estou sozinho, banhado de uma luz que não me explico nem quero, numa tranquilidade que me pega à rigidez do banco de madeira corrido, ficando-me por aí a olhar olhando para os altares que são todos belos.

Quero voltar a comer bem e tratado, trazendo no bolso da minha memória cartões-de-visita com novos amigos. O Silva da Ribeira Seca, o Alabote, na Ribeira Grande, a Associação Agrícola, a Caloura, no Hotel Terra Nostra. O cozidinho enxofrado a lembrar o diabo, de bom.

Quero residir sempre que lá irei no Pico do Refúgio.

Ir aos Mosteiros em dia de mar batido e imaginar uma oração que não sei dizer.

Quero beber um copo de vinho e o mar a dançar para mim no Santa Bárbara.

Quero deitar-me de novo de abraços abertos amplos, mas vivo e muito feliz num alto do cemitério da Povoação, onde possa, eu e os mortos que aí residem felizes, estarmos sempre a olhar para o mar, na esperança de vermos uma baleia a fazer-nos adeus, lá longe, vendo-nos minúsculos, deitados num cemitério, eu vivíssimo.

Quero voltar aos Açores, às outras ilhas, a todas, parte minha, mais corajosas e aventureiras. Num dia sem testemunhas, desprenderam-se desta terra continental e foram a conhecer os mundos. Queriam a liberdade.

Luis Robalo

luizrobalo.blogspot.com

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