A noite em que os Wolves foram campeões do mundo

O Wolverhampton dominou o futebol inglês nos anos 1950 e, pelo meio, resgatou o orgulho britânico com um triunfo inesperado sobre o grande Honved de Puskas, Kocsis e Czibor.

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Será uma questão de tempo até os Wolverhampton Wanderers serem campeões da Championship inglesa e garantirem, seis anos depois, o regresso à Premier League. Vão fazê-lo com uma forte armada portuguesa, do treinador Nuno Espírito Santo aos seis jogadores (Rúben Neves, Diogo Jota, Ivan Cavaleiro, Hélder Costa, Roderick Miranda e Rúben Vinagre), mais um par de jogadores com passado no futebol português (o francês Boly e o brasileiro Bonatini). Mas, para não variar num país que tem dois campeões europeus na segunda divisão (Aston Villa e Nottingham Forest) e já teve 24 campeões diferentes, o Wolves também teve um período de grande domínio do futebol inglês e chegou a deter o título oficioso de campeão do mundo.

A Inglaterra sempre teve dificuldade em lidar com o estatuto de pátria do futebol porque rapidamente ficou para trás quando o jogo se começou a popularizar um pouco por todo o mundo. Não participou nos primeiros Mundiais (porque se recusou a fazer parte da FIFA) e foi humilhada na estreia em 1950 pelos amadores dos EUA, e muitos contactos com as melhores selecções do mundo acabavam em humilhação. Foi o que aconteceu nos dois confrontos com a Hungria em 1953 e 1954, 6-3 em Wembley e 7-1 em Budapeste. Mesmo sem serem campeões do mundo, os húngaros eram os grandes inovadores do futebol e tinham alguns dos melhores do mundo, como Ferenc Puskas, Sandor Kocsis ou Zoltan Czibor.

Ora, neste período de humilhações internacionais, quem dominava o futebol inglês eram os Wolverhampton Wanderers e era um domínio que se ia estender durante quase uma década. Os Wolves tinham sido uma das 12 equipas participantes no primeiro campeonato profissional inglês em 1888 (foram terceiros), mas o primeiro título só chegaria em 1954 – nas sete épocas seguintes iria ter mais dois títulos, dois segundos lugares e dois terceiros, e uma Taça de Inglaterra. E como o representante maior do futebol inglês, era com os Wolves que algumas das grandes equipas mundiais queriam jogar. O Honved de Budapeste, que tinha metade da selecção húngara, era uma delas.

O Wolves não era a equipa mais espectacular do mundo, mas um intérprete refinado do “pontapé para a frente” (o que os inglesas chamam de “kick and rush”) assente numa superior condição atlética dos seus jogadores, mais rápidos e mais fortes que os adversários. Era esta a pouco sofisticada mas eficiente estratégia do seu jovem treinador Stan Cullis, um antigo internacional inglês que fora expulso da selecção dos três leões por se recusar a fazer a saudação nazi num jogo com a Alemanha um ano antes do início da II Guerra Mundial.

Em 1954, o ano do seu primeiro título, o Wolves também se tornava numa das primeiras equipas em Inglaterra a equipar o seu estádio, o Moulineux, com luzes artificiais, ganhando a capacidade de fazer jogos nocturnos. Depois de arrumarem algumas das grandes equipas da altura, como os soviéticos do Spartak Moscovo ou os argentinos do Racing Avellaneda, a noite de 13 de Dezembro, em pleno Inverno britânico, seria contra o Honved de Puskas, Cocsis e Czibor, os mesmos que tinham humilhado a Inglaterra duas vezes.

E a primeira parte, perante 55 mil pessoas, sugeria uma humilhação semelhante. O Honved chegou ao intervalo a vencer por 2-0, com golos de Cocsis e Ferenc Machos, e Bert Williams, o guarda-redes da casa, foi o grande responsável por manter a desvantagem em números respeitáveis. Antes da segunda parte, que iria ter transmissão televisiva em directo na BBC, o treinador Stan Cullis mandou os adjuntos, os suplentes e os apanha-bolas com baldes de água para tornar o campo num pântano. O objectivo era travar o jogo fino dos magiares e esperar que o “kick and rush” fizesse o resto.

“O Honved começou a ficar preso na lama e os Wolves, no seu estilo de bolas longas, começaram a desfazer os húngaros. Não tenho dúvidas de que se o Cullis não nos tivesse mandado encharcar o campo, eles tinham ganho 10-0”, recordou mais tarde Ron Atkinson, que viria a ter uma longa carreira de treinador, e que, na altura, era um aprendiz de jogador nos Wolves e apanha-bolas nesse jogo. Ora, a estratégia de Cullis teve o seu efeito. Um penálti convertido por Johnny Hancocks e dois golos de Roy Swinbourne deram o triunfo por 3-2 ao Wolves que levou os britânicos ao delírio e a um sentimento de desforra em relação ao que acontecera com a selecção poucos meses.

O “Daily Mirror” não fez por menos. “Wolves, campeões do mundo”, escrevia o diário britânico. Esta distinção era, claro, de validade muito duvidosa. Como assim, campeões do mundo, se nem sequer tinham jogado num contexto verdadeiramente competitivo contra os campeões de outros países? E a verdade é que foi a partir deste exagero britânico que se criou aquilo que hoje chamamos Liga dos Campeões. A ideia começou de um jornalista do “L’Equipe” que queria transportar para a Europa o modelo do Campeonato Sul-Americano das Nações e conseguiu convencer a recém-formada UEFA a avançar para a Taça dos Campeões Europeus logo em 1955. O Sporting foi o primeiro representante português e o Real Madrid o primeiro campeão. Quanto ao Wolves, o “campeão do mundo”, ficou de fora.

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