Quando Portugal fazia de Hungria da Europa

Nacionalismo: já lá estivemos, já vimos o que implica e já perdemos 48 anos com ele. Num país como Portugal, as suas ilusões só se conseguiram manter à custa de pobreza no interior e pilhagem no exterior.

O livrinho que tenho à frente dos olhos enquanto escrevo estas linhas chama-se Principes et Institutions de l’État Nouveau Portugais (Princípios e instituições do Estado Novo Português) e foi editado em 1935 pelo Secretariado de Propaganda Nacional. O facto de se encontrar em francês indica que se trata de um exemplar do esforço que o salazarismo fez para divulgar no resto da Europa e do mundo a Constituição de 1933 com que inaugurou o Estado Novo há 85 anos feitos esta quarta-feira (a constituição foi “aprovada” a 19 de março de 1933 com um plebiscito onde as abstenções contaram como votos a favor, mas entrou em vigor com a publicação no Diário da República a 11 de abril do mesmo ano). Este gesto de vaidade é comum a muitos regimes autoritários: quando em 2011 o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán decidiu impor uma nova constituição em cuja redação não participaram os deputados da oposição, logo seguida por uma lei eleitoral que lhe dá sempre dois terços do parlamento com menos de 50% dos votos, também procedeu imediatamente à edição de vários livros em língua estrangeira partilhando a boa nova da sua “democracia iliberal” aos quatros ventos. Tenho uma prateleira inteira desses livros, oferecidos a cada reunião com o governo húngaro, lá em casa.

Nos meados dos anos 1930 era Portugal que estava na moda entre os conservadores autoritários. Na primeira página do seu miolo, este livrinho explicando o salazarismo aos estrangeiros de língua francesa tem à cabeça uma única palavra: "NACIONALISMO". Os primeiros parágrafos constroem um caso contra as ideias do iluminismo, acusando os enciclopedistas do século XVIII de terem levado a humanidade a um “individualismo egoísta” no qual “uma multitude de ideias contraditórias saem de cérebros exaltados” (a tradução é minha). Para quem acha que o salazarismo não estava atento às modas do tempo ou não sabia em que teclas tocar para ser apreciado pelos nazis e fascistas, note-se que ainda a primeira página não terminou e o livrinho já se lança no antissemitismo. Diz ele que “a divisa Liberdade, igualdade, fraternidade… criou uma sociedade que se impregnou do espírito judaico do lucro… tornando-se quase amoral e encarniçando-se em aumentar a miséria social para a oferecer em holocausto a um progresso fingido”.

“O humanitarismo idealista do século XVIII”, diriam vocês, é uma coisa boa? Pois saibam que, segundo o livrinho, ele “rompeu com o equilíbrio moral da sociedade”. “O nacionalismo português”, por outro lado, “renasce dos escombros de um século inteiro de racionalismo subjetivista”. Isto não é um ensaio enviado por um qualquer calouro a uma gazeta universitária. Isto era a doutrina que o Portugal oficial do tempo dos nossos avós e pais pugnava por vender aos estrangeiros. “O nacionalismo opõe-se ao internacionalismo”, conclui o curto capítulo de quatro páginas, antes de se lançar o livrinho num novo tema, “VIDA E MORTE DO LIBERALISMO”, a que se seguem capítulos como “DITADURA”, “UNIÃO NACIONAL”, “A MOCIDADE NAS ESCOLAS” ou “A ALEGRIA NO TRABALHO”.

O mais interessante é saber, não a que se opunha, mas do que dependia o nacionalismo salazarista. A resposta é simples: austeridade permanente e colonialismo perpétuo. A austeridade, embora não fosse essa a palavra usada, era entendida como a forma de escapar à “desordem financeira, desordem política e desordem moral” do mundo internacional moderno (o livrinho explica com muito brio a recusa de empréstimos da Sociedade das Nações). No subcapítulo sobre “O Império Colonial”, os propagandistas do Estado Novo declaram “que é da essência orgânica da Nação Portuguesa o exercício da função histórica de possuir e colonizar territórios no ultramar e de neles civilizar os povos indígenas” (com a Constituição de 1933 entrou também em vigor um Ato Colonial).

Nacionalismo: já lá estivemos, já vimos o que implica e já perdemos 48 anos com ele. Num país como Portugal, as suas ilusões só se conseguiram manter à custa de pobreza no interior e pilhagem no exterior. Conversa sobre soberania não lhe faltou. O resultado foi menos soberania para os portugueses e nenhuma soberania para os colonizados.

Bom não esquecer.

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