Porque não devemos rever as metas de défice

Agora que a economia cresceu mais do que o previsto há dinheiro para investir onde ele faz muita falta.

O ministro das Finanças apresentou ao Governo (e fez aprovar em Conselho de Ministros) o Programa de Estabilidade 2018-2022. Este documento macroeconómico serve para enviar a Bruxelas os grandes números das escolhas económicas dos próximos anos, em que se antevê o desempenho da economia, contas públicas, etc.

Mário Centeno propõe a revisão da meta do défice para 2018, passando do 1% previsto em novembro para 0,7% do PIB. Esta redução do défice significa uma folga orçamental para 2018 superior a 500 milhões de euros, face ao que o Governo antecipava há quatro meses.

Por que é que existe uma folga orçamental em 2018? A economia cresceu mais do que o Governo esperava em 2017 e essa atividade económica refletiu-se positivamente nas contas públicas. As receitas fiscais beneficiaram da melhoria económica e cresceram mais do que o previsto. Por outro lado, a criação de emprego tem um efeito positivo nas contas da Segurança Social, representando mais receitas e menos despesa. Há mais pessoas a descontar mensalmente e menos pessoas a receber apoios sociais. Uma outra ajuda veio do exterior: o país beneficiou da redução internacional das taxas de juro, conseguindo uma poupança assinalável.

A melhoria das contas públicas em 2017 tem um efeito positivo nas contas de 2018, dado que o ponto de partida passou a ser diferente. Neste caso em concreto, a folga é superior a 500 milhões de euros.

A revisão do défice é exigida pela Comissão Europeia? Não há nenhuma imposição europeia para a revisão das metas do défice. O Governo acordou em outubro passado a meta do défice para 2018 com a Comissão Europeia. Esse acordo foi alcançado sem grandes dificuldades, tendo sido aceite a meta de défice de 1%. O Orçamento do Estado para 2018 está “amplamente de acordo com a previsão de outono da Comissão”, disse o comissário europeu dos Assuntos Económicos, Pierre Moscovici, acrescentando que “as coisas estão a dirigir-se na direção certa”.

A meta de redução da dívida também foi acordada com Bruxelas, fazendo parte dos dados macroeconómicos escrutinados nesse período. Um outro aspeto, muito técnico é certo, prende-se com o saldo estrutural (cálculo do saldo orçamental depois de retirados os efeitos de ciclo económico e as medidas temporárias). Mas, até neste ponto, a situação é positiva, porque o aumento recente do PIB potencial do país ajuda ao cumprimento deste critério.

As agências de rating estão à espera de uma revisão das metas do défice? As agências de notação “adoraram” o Orçamento do Estado para 2018 e os seus objetivos orçamentais. Por isso mesmo, uma após outra, foram retirando Portugal do nível “lixo”. É certo que todas apontam a fragilidade que Portugal pode ter com o elevado nível de dívida. É uma verdade de La Palice, todos o sabemos, mas isso não retirou confiança à proposta orçamental.

Os juros da dívida pública também evoluíram positivamente com o debate orçamental para 2018 e com a sua consequente execução. Não há nenhuma instabilidade nos “mercados” por causa das metas orçamentais previstas ou pelas decisões políticas em curso.

O crescimento da economia pode ajudar os serviços públicos? Pode e deve. O que se espera é que, quando a economia melhore, as contas públicas também melhorem. E espera-se que, quando as contas públicas melhorem, os serviços públicos sejam reforçados. Tem sido afirmado vezes demais que não há dinheiro. Não há dinheiro para a Saúde, não há dinheiro para a Educação, não há dinheiro para a Cultura, etc. Ora, agora que a economia cresceu mais do que o previsto, verifica-se que há dinheiro para investir onde ele faz muita falta. Basta olhar para as dificuldades nos hospitais, para as listas de espera, para perceber como essa tem de ser uma prioridade nacional.

Qual era o compromisso do Governo? Quando discutimos o Orçamento do Estado para 2018, António Costa dizia: “Temos vontade de reforçar o investimento na área da Cultura, da Educação, da Saúde e da Ciência.” Mas, logo depois, recusava a ideia de uma “folga financeira” e a perspetiva de dar “um passo maior do que a perna”. Por isso não se avançou mais e os serviços públicos ainda não tiveram a dotação financeira necessária.

Ora, agora que se prova que temos uma folga financeira, espera-se que o Governo cumpra a “vontade de reforçar o investimento”. Os serviços públicos têm sido vítimas de cativações e vetos de gaveta do Terreiro do Paço. Agora, há uma folga que permite uma ação concreta de revitalização do Estado social.

Ninguém acusa o Governo de rever as metas de despesa ou de receita, não é isso que se passa. O Governo desvia-se do compromisso e da sua vontade expressa de reforço do investimento público.

Por que está Mário Centeno errado? Porque considera que uma política orçamental restritiva é o garante dos juros baixos para a dívida pública. Há nesta ideia um erro técnico e um erro político. O erro técnico tem que ver, eventualmente, com o desconhecimento da forma como o mercado de dívida pública funciona.

A partir do momento em que Portugal saiu do “lixo”, nível a que estava votado pelas agências de rating, passou a ter a sua dívida pública como investimento elegível para um alargado leque de fundos. Isto acontece num momento avançado de um período em que as dívidas públicas têm sido um grande foco de investimento. Mas, como as regras destes fundos financeiros obrigam a uma grande variedade de dívida detida e já tinham atingido o plafond para muitas das origens disponíveis, a dívida portuguesa aparece como uma nova forma de diversificar essas carteiras de ativos. Parece estranho, mas é um benefício pelo facto de o nosso país ter ficado fora dos mercados de dívida pública durante mais de cinco anos. Num futuro próximo, esta conjuntura até pode levar a uma evolução positiva do diferencial entre as taxas de juro do nosso país e as de outros países de referência.

O erro político é considerar que, numa conjuntura europeia e internacional de enorme instabilidade, onde as crises políticas se avolumam e as guerras se avizinham, alguém exigirá a Portugal mais do que tinha sido acordado por todos há quatro meses.

A discussão é sobre o Orçamento do Estado para 2019? Não, é sobre estabilidade. Estabilidade na execução de um orçamento que apenas está em curso há quatro meses, estabilidade nos compromissos políticos assumidos na negociação orçamental, estabilidade na vida das pessoas que só pode ser garantida com serviços públicos de qualidade.

É estranho, por isso mesmo, o Presidente da República querer criar uma crise sobre o Orçamento do Estado para 2019, quando o que está a ser discutido é a meta de défice para 2018 — aliás, o documento que foi assinado há quatro meses por Marcelo e que agora, unilateralmente e sem qualquer benefício, o Governo quer rever. Se o Presidente da República quer ser o baluarte da estabilidade, então, a única posição está bem à vista e é a que defende as pessoas e os serviços públicos.

 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 5 comentários