Jornalistas admitem difundir informação facciosa sob influência do Governo

Depois de Orbán ter conseguido o seu terceiro mandato consecutivo enquanto primeiro-ministro, jornalistas ouvidos pelo Guardian contam a história de como a sua retórica anti-imigração é repercutida graças à manipulação da comunicação social.

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No domingo, Orbán foi eleito para o seu terceiro mandato. Ao longo do seu percurso enquanto primeiro-ministro, fez alterações constitucionais que lhe permitem ficar mais tempo no poder Reuters/BERNADETT SZABO

Quase uma semana depois de o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, ter garantido a vitória nas legislativas com o seu partido Fidesz, vários jornalistas do país ouvidos pelo jornal britânico The Guardian denunciam a influência do Governo nas redacções, admitindo o seu papel em divulgar informações erradas ou enviesadas, sobretudo no que toca a questões de imigração. As declarações recolhidas foram publicadas esta sexta-feira.

Uma das práticas mais comuns antes das eleições legislativas de domingo era a divulgação de casos relacionados com refugiados e migrantes, associando-as a histórias de crime e de terrorismo, dizem os jornalistas ouvidos. E acreditam que grande parte dessas mensagens vem do Governo: “às vezes um editor chega à secretária a falar ao telefone e dita-nos o artigo todo, palavra a palavra. Não sabemos quem está do outro lado da linha”, contou um jornalista.

O Guardian falou com vários funcionários da televisão pública húngara MTVA, para ouvir o lado de dentro e perceber de que forma é que as histórias divulgadas eram manipuladas de forma a favorecer o Governo em funções. “Nunca tinha vivido nada assim, mesmo na MTVA: era uma pura mentira”, disse um dos jornalistas ao Guardian, pedindo para não ser identificado. Também foram ouvidos jornalistas de outros órgãos de informação, que acreditam que praticamente todos os meios de comunicação estão sob influência do executivo húngaro.

Nos últimos anos, o Governo do Fidesz tem aproveitado as suas supermaiorias (de dois terços de lugares no Parlamento) para pôr várias instituições sob o seu controlo: não são só os media, mas também os tribunais, por exemplo. A campanha do Fidesz foi feita em grande parte recorrendo a um discurso anti-imigração, tendo sido caracterizada por observadores internacionais como uma retórica “intimidante e xenófoba, com enviesamento mediático e um financiamento de campanha opaco”, lê-se no Guardian.

O discurso utilizado era “hostil e xenófobo”, algo que o responsável da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), Douglas Wake, disse ser “lamentável num contexto eleitoral”. Os observadores internacionais referiam ainda que a televisão pública “beneficiava claramente a coligação no poder, em discordância com os níveis europeus”.

Os jornalistas dizem que sentiram a necessidade de denunciar esta influência política em nome da verdade e da decência, havendo quem estivesse a pensar demitir-se depois de conhecidos os resultados eleitorais. “Senti-me horrível, porque podia ver que nós podemos e influenciamos de facto as pessoas”, confessou um dos profissionais.

A campanha contra Soros

Nos quase dez anos que está no poder, o partido de Orbán deixou uma marca profunda na política e na sociedade húngara, a começar pelas alterações constitucionais que permitiram ao Governo ficar no poder e esmagar a oposição. Como referido num artigo do PÚBLICO em antevisão das eleições húngaras, os órgãos de comunicação públicos são hoje pouco mais do que caixas-de-ressonância do executivo e os privados passaram para as mãos de empresários próximos do Fidesz.

Um dos alvos do partido vigente é bem claro: o investidor e filantropo de origem húngara George Soros tornou-se nos últimos anos no inimigo número um do Governo, pelas críticas que fez à sua política migratória – uma das prioridades legislativas de Orbán é precisamente a aprovação da lei “Parar Soros”, que pretende identificar e frear organizações não-governamentais que apoiam a “imigração ilegal”. Para o Governo, George Soros está envolvido numa trama, juntamente com Bruxelas e com a oposição húngara, para destruir a Hungria ao deixar entrar estrangeiros no país.

“Parece-me que foi criada uma atmosfera de medo. Foram criados reflexos pavlovianos para palavras como perigo, terrorismo, migrantes, oposição, Soros e Bruxelas”, disse ainda um dos jornalistas da MTVA. Nas televisões, diz, são frequentemente divulgadas imagens de ataques terroristas e de conflitos com refugiados. “A tolerância é por norma criticada, enquanto a posição anti-imigração é apresentada como a única opinião válida”, concluiu. 

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