A propósito da pressão fiscal

Em 2017, atingimos o valor mais alto da carga fiscal em percentagem do PIB. Andámos a trabalhar exclusivamente para o Estado nos primeiros 128 dias do ano.

1. Um imposto (substantivo) é isso mesmo, imposto (verbo). A verba e o verbo. Adaptando a célebre frase de Fernando Pessoa, primeiro estranha-se... depois se nos entranha. Por isso, na lei, quem paga impostos é um sujeito passivo. O contribuinte – outra curiosa palavra – é obrigado a ser passivo. Será que quem não paga os impostos é sujeito activo em vez de passivo?

Só nos impostos indirectos é que os sujeitos passivos são mesmo passivos. Entregam o imposto ao Fisco, mas não o suportam. Esta é a diferença entre o contribuinte de direito (o fornecedor do bem ou serviço em causa) e o contribuinte de facto (o que suporta, no preço, o disfarçado imposto). Por outras palavras: aqui há dois sujeitos passivos: um passivo activo, o que arrecada o imposto para entregar nas Finanças; e um activo passivo, o que paga o imposto, às vezes convencido que não o paga.

Este ano, muitos sujeitos passivos (no IRS) “assaltaram” o Portal das Finanças para acelerar a devolução pelo Estado do imposto de tesouraria que resulta de o Fisco reter (ou derreter?) mais colecta do que a que, no fim, é liquidada. Eis uma nova tipologia fiscal: os sujeitos passivos mais activos.

A propósito de liquidação, a maioria dos sujeitos passivos não entende o que ela significa. Não porque se sintam fisicamente assediados por qualquer instrumento letal, apenas porque não entendem que aquele substantivo significa o cálculo final do imposto a pagar. Ou seja, quando o imposto está liquidado, nós ficamos também liquidados, porque ainda não pagámos o que foi liquidado. Confuso, mas real...

Mas vá lá, felizmente, já não existe o imposto feudal, a corveia (do latim corrogare, exigir), que correspondia ao pagamento através de serviços prestados nas terras ou instalações do senhor feudal.

2. A propósito de tributos – outra interessante e simpática expressão que junta impostos, taxas, contribuições e outras receitas –, tem sido muito discutido nas últimas semanas o nível de carga fiscal em 2017.

O conceito de carga fiscal não é unívoco. Procurando medir o esforço que a sociedade paga para beneficiar dos serviços prestados pelo Estado, é recorrentemente traduzido por uma fracção em que o numerador são os impostos arrecadados e o denominador é o PIB do ano. Assim sendo, se houver mais receita fiscal até pode acontecer que a pressão fiscal não tenha aumentado: basta que o denominador cresça tanto ou mais do que o numerador.

A este índice podem juntar-se outros que caracterizam o chamado esforço fiscal que tem em conta o PIB per capita e a capacidade fiscal da economia, entre outros critérios, para os quais, todavia, não há dados oficiais.

Em 2017, atingimos o valor mais alto da carga fiscal em percentagem do PIB: 34,7% (em 2016, havia sido de 34,3%), resultante de um aumento de 3140 milhões de euros. Andámos a trabalhar exclusivamente para o Estado nos primeiros 128 dias do ano (até 8 de Maio, ou 14 de Junho não contando com sábados e domingos).

Ou seja, os impostos cresceram mais do que a riqueza. A colecta aumentou 5% e a riqueza anual cresceu 4,1% (em termos nominais, isto é, crescimento real mais o deflator).

Descascando estes números, a maior parte do aumento da receita fiscal resulta do que, em economês, se chama estabilizadores automáticos: se cresce a economia, há mais emprego, mais rendimento tributável e mais consumo. Também terá havido alguma melhoria de eficiência na cobrança tributária, o que pode ser entendido como justo e equitativo, até para que quem paga não tenha de pagar por quem ilegalmente não paga. Por fim, uma parte restante terá a ver com o aumento da incidência fiscal.

Ou seja, o Governo tem razão em boa parte, mas o PSD e o CDS (PCP e BE emudeceram) terão argumentos de contestação. É que na maioria dos impostos indirectos (com excepção do IVA) houve agravamentos, em particular no ISP. Acontece que a sua natureza é mais propensa a uma sedação da consciência fiscal. Não se sente tanto o seu pagamento e a ideia de “aumentos brutais” de imposto não existe como nos impostos directos (IRS).

Para melhor observarmos esta tendência, basta olhar para a evolução da estrutura fiscal: ao passo que os impostos directos decaíram de 10,3% para 10,2% do PIB, os indirectos aumentaram de 14,9% para 15,2%.

Em suma, anda tudo trocado no campo ideológico! A esquerda, desde o PS ao Bloco e PCP, sentem-se confortáveis com o que sempre contestaram. O PSD e CDS contestam estes resultados no sentido oposto ao que doutrinariamente apoiam. A esquerda (sobretudo, a mais radical) sempre achou que é nos impostos directos que se deve concentrar a política de equidade fiscal por via da sua progressividade, pois que os indirectos não diferenciam pobres e ricos. A direita sempre se pautou por uma tributação directa que seja mais amiga do emprego, do investimento e da poupança, argumentando que é preferencialmente por via do consumo e não dos rendimentos que se deve tributar.

Vá lá a gente entender...

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