Só chamando nomes é que esta dança acontece

Companhia – em cena no Teatro Maria Matos, Lisboa, de 14 a 19 de Abril – parte de reflexões sobre o movimento em contexto laboral e sobre o prazer envolvido no labor que é a dança.

Foto
José Carlos Duarte

Quando João dos Santos Martins iniciou com o grupo que com ele partilhava Projecto Continuado a primeira residência artística para a criação de Companhia, no Chile, levava consigo duas questões que queria colocar em discussão. “Dois estudos de caso”, chama-lhes. O primeiro prendia-se com a história de Rudolf von Laban, bailarino e teórico que foi um dos criadores a encabeçar a criação de uma dança moderna europeia. Em concreto, interessava a João a forma como, em 1947, fugido da Alemanha para Inglaterra, sistematizou no livro Effort a aplicação de estudos do movimento na realidade operária, “numa tentativa de melhorar as condições de vida dos trabalhadores das fábricas, tentando alcançar uma maior eficácia no movimento utilizado nas máquinas e em relação com a produtividade”. Ou seja, numa lógica simples: um trabalhador que desempenhe a sua função mecânica com mais conforto não só evitará mazelas físicas como estará capacitado para ser mais produtivo. O segundo dizia respeito ao release, associado a Trisha Brown, “uma técnica”, descreve João, “que absorve um conhecimento do corpo e depois o utiliza num lugar em que tem outra relação de estar bem consigo e não ter de se adaptar a uma forma exterior”.

Companhia – em cena no Teatro Maria Matos, Lisboa, de 14 a 19 de Abril – parte, portanto, de duas reflexões sobre o movimento em contexto laboral e sobre o prazer envolvido num labor que é a dança. E começou de acordo com uma dinâmica de grupo em que João dos Santos Martins reconhece um evidente valor criativo: “um de nós traz algo que é discutido, tentado, ensaiado, experimentado e depois novamente discutido”. “Tudo está sempre em processo de alteração através da discussão e da prática.” Os dois estudos de caso são exemplo de uma relação que o coreógrafo (escolhido pelo Ípsilon como um dos rostos para o futuro da criação artística em Portugal) tenta estabelecer com a História da dança. Uma História da dança que acusa, na verdade, de ser “muito fetichista – antes era negligenciada pelos artistas, era apenas objecto de estudo especializado por historiadores ou antropólogos, agora é uma coisa muito em voga”. O que lhe interessa, portanto – e isso era algo levado já para palco em Projecto Continuado –, é reposicionar-se ou dialogar com essas referências passadas, “tentando accionar o mecanismo de não ignorar”.

O seu interesse na apropriação centra-se no facto de qualquer transmissão não poder fugir à sua condição de ter de ser executada por um corpo específico, que carrega a sua própria experiência individual. “Isso”, afirma, “está sempre em relevância nos meus trabalhos: aquilo que está a ser feito e a pessoa que o está a fazer. Há uma ideia de coreografia, uma ideia de bailarino e o resultado é uma ideia de dança em que as duas coisas se misturam até deixar de se ver um e outro, apenas se podendo ver o resultado.” Por isso, as citações que se infiltram nas criações de João dos Santos Martins devem ser reconhecíveis – para salientar o conflito entre a coreografia e o intérprete. Era o que acontecia em Projecto Continuado, por exemplo, com o conceito de construção de dança em que era citada Huddle, peça de Simone Forti, em que “cada elemento de uma espécie de montanha de pessoas vai subindo, de um lado para o outro, até todos terem completado essa passagem”.

Foi precisamente a partir dessas construções, e da ideia de interdependência entre os vários corpos, que João, Ana Rita Teodoro, Daniel Pizamiglio, Filipe Pereira, Sabine Macher e Clarissa Sacchelli chegaram a um dos estímulos fundamentais para Companhia. A partir das várias sugestões trazidas por cada um, acabaria por ser Clarissa a partilhar com o grupo um vídeo a que tinha assistido no site do New York Times, em que se podia ver Yvonne Rainer a dançar uma das suas peças seminais, Trio A, criada originalmente em 1966, mas já com 80 anos de vida em cima. “Há uma certa altura, no meio da dança”, descreve João, “em que entra outra bailarina que vem segurar-lhe um braço para ela poder descer até ao chão.” Esse segmento interessou o grupo e lançou-o na exploração de um conceito de dança assistida, tendo improvisado uma série de situações em que só com a ajuda dos restantes intérpretes as suas coreografias individuais podem ser concretizadas.

Tempo e espaço

Companhia carrega no título essa noção de colectivo e de interdependência. Algo que se torna claro desde o primeiro momento. À medida que os corpos dos seis intérpretes se vão desprendendo da parede onde se encontram e onde se procuram mutuamente, seguem diferentes caminhos e habitam o palco segundo várias coreografias pessoais, mas em que constantemente os nomes próprios dos outros são chamados em pedidos de assistência. Tudo isto decorre com recurso a uma espécie de banco de ideias testadas em ensaios, mas cuja sequência não é rígida nem obedece a uma partitura – a única partitura que existe respeita a coreografias colectivas. Esse esquema foi a resposta encontrada para uma das inquietações com que o grupo se debateu: “Como é que podíamos sair do registo da improvisação e, ao mesmo tempo, manter o carácter vivo e espontâneo nas relações?”

Esse carácter é garantido pelos pedidos de assistência que podem chocar entre si. Acontece que a pessoa chamada a prestar assistência possa encontrar-se, por vezes, a meio de colaborar numa das outras coreografias individuais e não poder acorrer de imediato. Desta forma, Companhia deixa-se invadir por momentos de suspensão, em que uma acção pode ficar por completar enquanto alguém não se libertar de outra sequência a decorrer em simultâneo. “São essas brechas na coreografia que criam espaço e que mantêm as relações espontâneas”, reforça João do Santos Martins. E é também esse jogo das assistências solicitadas – que não estão escritas – que interessa ao grupo, porque implica sempre uma negociação. Desta forma, cada um é também responsável pela gestão do tempo e do espaço que ocupa em cena, mas também de todos os intérpretes restantes.

Todo um conjunto de acções conjuntas que aproxima João dos Santos Martins de uma forma de estar em grupo que diz informada “pelas experiências dos anos do Judson Church [colectivo ligado à vanguarda da dança nova-iorquina, cuja actividade efervescente entre 1962 e 1964 deixou marcas profundas em muito do que se lhe seguiu, em particular no percurso de Trisha Brown, Yvonne Rainer ou David Gordon], por esse grupo de pessoas e pela sua forma de aliar uma etiologia democrática e utópica no cerne do processo de trabalho”. E em que esse processo não se faz de porta fechada, deixa-se escancarado para todos quantos o queiram descortinar. Como quando Filipe inicia uma contagem decrescente e todos se apressam a resolver outras coreografias para estarem prontos no momento em que o seu corpo for projectado para trás.

Sugerir correcção
Comentar